Resumo: A impossibilidade de constituição de uma pessoa jurídica unipessoal (exceto pela subsidiária integral) criou, no País, uma realidade mercantil paralela, na qual duas pessoas se reúnem para constituir uma sociedade de responsabilidade limitada, sendo uma dessas pessoas o que se poderia chamar de “sócio fictício”, já que sua participação no empreendimento presta-se, tão somente, para atender à exigência da pluralidade de sócios, exigida por lei. Essa realidade paralela cria situações que tanto poder levar o “sócio fictício” a ter prejuízo de diferentes natureza, como a criar limitações e constrangimentos ao “sócio real”. De outro lado, o empresário que deseje alçar voo solo, sem render-se ao artifício comum de eleger um “sócio laranja”, não conta com o benefício da responsabilidade limitada, colocando seu patrimônio pessoal em risco para o desenvolvimento da atividade empresarial. Após diversas tentativas de criar um tipo societário que permitisse ao empresário explorar uma atividade econômica, de forma individual, sem expor os bens amealhados com esforço, foi transformado em lei, em 11/07/2011, o Projeto de Lei n° 4.605, de 04/02/2009, de autoria do Deputado Marcos Monte (DEM/MG). A Lei n° 12.441, publicada no D.O.U. de 12/7/2011, criou a figura da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, tipo societário já existente em diversos países, que permite ao empresário desenvolver sua atividade comercial com a limitação de sua responsabilidade pessoal. Apesar do avanço que essa lei trouxe, sua redação final deixou dúvidas, e algumas restrições impostas por esse novo dispositivo legal desvirtuaram o objetivo principal de sua criação.
Sumário: Considerações Iniciais; 1. Uma breve história da iniciativa privada; 2. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI; 3. Os questionamentos relativos à Lei n° 12.441/2011; 3.1 A extensão da responsabilidade; 3.2 A constituição da EIRELI por pessoa jurídica; 3.3 O capital mínimo; 4. Conclusão; Referências Bibliográficas.
Considerações Iniciais
A Lei nº 12.441, de 11/7/2011, publicada no D.O.U. de 12/7/2011, alterou o Código Civil brasileiro, incluindo um novo Título ao Livro II (Direito de Empresa), pelo qual ficou criada a empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI.
Até o evento da criação da EIRELI, uma sociedade simples ou empresária só poderia ser constituída com um mínimo de dois sócios e, no caso de faltar a pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de 180 dias, a sociedade deveria ser, obrigatoriamente, dissolvida .
A pessoa que desejasse empreender isoladamente, ou seja, sem um sócio obrigatório, deveria registrar-se perante a Junta Comercial como empresário individual. Essa modalidade de empreendedorismo oferece algumas vantagens, como a possibilidade de obter um registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (permitindo, assim, a abertura de contas bancárias e a emissão de notas fiscais) e seu enquadramento no Simples Nacional.
Como principal desvantagem desse tipo societário, no entanto, está o fato de que o patrimônio do empresário individual confunde-se com o da empresa, ou seja, a responsabilidade do empresário é ilimitada. Isso significa dizer que as dívidas contraídas pela empresa podem alcançar o patrimônio pessoal do empresário individual.
Até o advento da Lei n° 12.441/2011, aquele que quisesse constituir uma sociedade, mas não desejasse a participação de um sócio, recorria ao estratagema de outorgar uma participação mínima a um segundo sócio que, no mais das vezes, passava a ser detentor de uma única quota do capital social da sociedade. Esse artifício, comumente, cria situações inconvenientes para o sócio minoritário, que tem seu nome vinculado a um empreendimento do qual não detém qualquer ingerência, controle e, muitas vezes, conhecimento de qualquer fato, ato ou omissão relativos à administração da sociedade. Com seu nome e CPF atrelados à sociedade, não raro repercussões pessoais, em razão de processos trabalhistas e fiscais, criam prejuízos graves ao sócio minoritário, que nem acesso tem a documentos e informações com os quais instruir sua defesa.
Desta forma, a Lei n° 12.441/2011 nada mais representa do que uma adequação à realidade empresarial já vigente há muitos anos no País, abolindo, assim, a simulação no quadro societário, à qual os empreendedores eram obrigados a aderir, em razão da exigência legal de pluralidade de sócios.
Feitas as devidas loas à iniciativa do legislador, há que se fazer considerações sobre as restrições e limitações impostas por esse diploma legal, bem como sobre as interpretações que vêm sendo adotadas por órgãos públicos, desalinhadas com os propósitos que, teoricamente, nortearam a elaboração desse preceito legal.
1. Uma breve história da iniciativa privada
A evolução do capitalismo e, consequentemente, dos conceitos de obrigação, vem de longos e, muitas vezes, tenebrosos anos, remontando ao Código de Hamurabi (ou Hammurabi), que teve grande e preponderante influência sobre os Códigos Hebraicos e também sobre a própria Bíblia, e ao Código de Manu (Livro Oitavo), na Índia.
Entre os preceitos estabelecidos pelo Código de Hamurabi, encontra-se a Lei de Talião, considerada uma das mais antigas leis existentes. A lex talionis, conhecida pela máxima “olho por olho, dente por dente”, regeu uma sociedade que ainda não tinha um Estado organizado, no qual a composição privada não permitia que o patrimônio alheio fosse atingido (Pagano, 1998). A Lei de Talião encerrava a idéia de correspondência de correlação entre o mal causado a alguém e o castigo imposto a quem o causou.
O Código de Manu é considerado como a legislação mais antiga da Índia, e apresenta historicamente uma primeira organização geral da sociedade. Em seu Livro Oitavo, artigo 209, apresenta a semente da organização societária, determinando que “Quando vários homens se reúnem para cooperar, cada um por seu trabalho, em uma mesma empresa, tal é a maneira porque deve ser feita a distribuição das partes”.
Se, pela Lei de Talião, o devedor respondia pelas dívidas com sua liberdade ou com sua própria vida, com o advento da Lex Poetelia Papiria, os ônus que recaíam sobre o devedor passaram a ser transferidos ao seu patrimônio.
A Lex Poetelia Papiria permitiu, assim, precificar as perdas, e alcançar o devido ressarcimento através do patrimônio do devedor ou do causador do dano, ao mesmo tempo em que, ao se coibir a punição corporal do devedor, ficaram fincadas as bases de um sistema social que reconhecia os direitos humanos e, com isso – e para isso – estabelecia a necessidade de mecanismos para a correta distribuição de justiça.
O capitalismo começou, então, a florescer, tornando-se o lucro o objetivo a ser alcançado. A partir da Idade Média, a noção da separação entre o patrimônio da sociedade e o dos sócios começou a ficar definida, e o exercício de atividades comerciais, sob a forma de sociedade em nome coletivo e sociedade em comandita simples, começou a se tornar comum (Borba, 1999).
A figura do empresário surge no início do século XIX, através da ampliação, pelo economista francês Jean-Baptiste Say, das noções econômicas sustentadas por Adam Smith, qualificando o empresário como “o que exerce a mais notável influência na distribuição da riqueza” (Requião, 2005).
O Código de Comércio Napoleônico (1807) objetivou o direito comercial, que passou a ser baseado na prática de atos de comércio regulados por lei, deixando de ser aplicado somente aos comerciantes matriculados nas corporações. De acordo com a teoria francesa dos atos de comércio, a matéria comercial, antes fundamentada na figura do comerciante da Idade Média, passou a ser definida pela prática dos atos de comércio enumerados na lei. Assim, para se qualificar como comerciante e submeter-se ao direito comercial, não era mais requisito essencial à pessoa que se dedicava à exploração de uma atividade econômica pertencer a uma corporação, bastando a prática habitual de atos de comércio (Taddei, 2002).
O Código Civil italiano de 1942 formalizou a teoria jurídica da empresa, que se caracterizava por não dividir as atividades econômicas entre os regimes comercial e civil, como fazia a teoria francesa, acarretando, com isso, uma unificação legislativa do direito privado na Itália (Taddei, 2002).
A teoria da empresa, elaborada pelos italianos, tornou a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços o núcleo do direito comercial, no lugar da prática de atos de comércio. Com isso, a figura do empresário – aquele que reúne capital, trabalho, matéria-prima e tecnologia para a produção e circulação de riquezas – foi alçada a um grau de importância superior ao do gênero da atividade econômica desenvolvida.
A evolução histórica do direito comercial, portanto, pode ser dividida em três períodos: o período subjetivo corporativista, que tinha como núcleo do direito comercial a figura do comerciante matriculado na corporação (Século XII ao Século XVIII); o período de vigência do Código de Comércio Napoleônico de 1807, compreendido entre o Século XIII e o Século XX, em cujo núcleo estavam os atos de comércio; e, finalmente, o período que se iniciou com a partir do Século XX com o Código Civil italiano de 1942, que tem como núcleo a empresa (Taddei, 2002), e no qual nasceu o direito empresarial.
A partir do estabelecimento da figura do empresário, houve o reconhecimento de sua importância como principal fonte de crescimento para muitas economias, sendo, inclusive, apontado por autores como Say, Marshall, Shumpeter, Cantillon e outros mais como o “quarto fator de produção” (Dinis; Ussman, 2006).
Dada a importância do empresário para a economia, e considerando as vantagens agregadas ao desenvolvimento da atividade empresarial pela possibilidade da limitação da responsabilidade pessoal do empreendedor, entre outras, é que se torna forçoso reconhecer a notabilidade da iniciativa do legislador em criar a figura da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI. Todavia, em que pese esse reconhecimento, é imperativo admitir a existência de lacunas na Lei n° 12.441/2011, que levaram a interpretações consideradas equivocadas, e que vêm criando embaraços para diversos empreendedores, bem como de restrições e limitações que não estão alinhadas ao caráter hodierno e progressivo dessa lei que representa um grande avanço nas relações empresariais.
2. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI
Segundo estudo feito pelo SEBRAE, divulgado em outubro de 2011, no Brasil são criados, anualmente, mais de 1,2 milhão de novos empreendimentos formais. Desse total, mais de 99% são micro e pequenas empresas e Empreendedores Individuais (EI).
Com relação aos investimentos estrangeiros diretos (IED) no país, dados mais recentes divulgados pelo Banco Central (BC) informam que foram investidos no Brasil um total de US$ 59,893 bilhões de janeiro a novembro de 2012. O resultado é o segundo melhor para o período, só perdendo para 2011, quando as entradas tinham somado US$ 60,017 bilhões. Para os especialistas da área, os investimentos das empresas estrangeiras têm superado as expectativas mais otimistas.
As informações acima apresentadas visam a reiterar a importância da criação da empresa individual de responsabilidade limitada. Até o advento de sua existência, a constituição de uma sociedade de responsabilidade limitada, que permitisse o desenvolvimento de atividades produtivas no país, com a limitação da responsabilidade do empresário ao valor do capital da empresa, apenas era possível aos empreendedores que se associassem entre si, seja de direito e de fato ou, como soía acontecer, de forma fictícia. Tanto pequenos empreendedores, quanto pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, que pretendessem investir no país, precisavam, obrigatoriamente, de um segundo sócio para seu empreendimento, o que, especialmente para os estrangeiros, representava um risco adicional, por precisar lançar mão do artifício de incluir, em seu quadro social, alguém a quem, na grande maioria das vezes, o investidor sequer conhece.
A discussão sobre a criação da empresa individual de responsabilidade limitada remonta aos anos 1980, dentro do âmbito do Programa Nacional de Desburocratização, comandado pelo então ministro Hélio Beltrão. Nos anos 1990, o tema voltou aos debates, em razão do Programa Federal de Desregulamentação. Finalmente, quando da elaboração do antigo anteprojeto da nova lei das sociedades limitadas, foi proposta, também, a criação da figura da empresa individual de responsabilidade limitada, mas a ideia foi abandonada em virtude da tramitação do novo Código Civil (Santos, 2011).
Outros países já adotaram, há décadas, esse tipo societário, tais como a Dinamarca, Portugal, Itália, Bélgica, Alemanha, Espanha, Portugal e, na América do Sul, o Chile, obtendo excelentes resultados com essa experiência, vez que a empresa individual de responsabilidade limitada oferece, entre outras vantagens, a facilidade e o baixo custo para sua constituição, em razão de sua simplicidade.
O descompasso entre a realidade mercantil e a legislação gera situações em que o empresário, seja a pessoa física ou a jurídica, se vê obrigado a lançar mão de ardis para não comprometer seu patrimônio pessoal, em razão das obrigações contraídas para desenvolvimento da atividade empresarial. Criou-se uma cultura de hipocrisia das sociedades contratuais (Mamede, 2007). Esse atraso legislativo, pode-se também afirmar, gera uma violação a um dos direitos fundamentais estabelecidos em nossa Constituição Federal, no inciso XX do art. 5º, que prescreve que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”. Ora, se para resguardar seu patrimônio, evitando que ele venha a ser alcançado em razão das obrigações contraídas pela empresa, o empresário precisa constituir uma sociedade que limite sua responsabilidade, e para tanto, é preciso que essa sociedade tenha, no mínimo, dois participantes, há, sim, um constrangimento imposto à pessoa para que se associe e permaneça associada a outrem.
No Brasil, a empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI foi criada através da Lei n° 12.441, de 11 de julho de 2011 que, por meio de seu art. 1°, acrescentou o art. 980-A ao Livro II da Parte Especial e alterou o parágrafo único do art. 1.033, todos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), na forma abaixo:
TÍTULO I-A
DA EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA
Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
§ 1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão “EIRELI” após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada.
§ 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.
§ 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração.
§ 4º (VETADO).
§ 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional.
§ 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
……………………………………………………………………………………………
“Art. 1.033. ……………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………………….
Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV caso o sócio remanescente, inclusive na hipótese de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, requeira, no Registro Público de Empresas Mercantis, a transformação do registro da sociedade para empresário individual ou para empresa individual de responsabilidade limitada, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115 deste Código”.
Apesar de ser uma pessoa jurídica, a EIRELI não é uma sociedade empresária, mas sim uma forma diferenciada de constituição de empresário individual. Consoante a análise de Frederico Garcia Pinheiro, “trata-se de uma nova categoria de pessoa jurídica de direito privado, que também se destina ao exercício da empresa”.
3. Os questionamentos relativos à Lei n° 12.441/2011
3.1 A extensão da responsabilidade
Mesmo antes de sua promulgação, em 11 de julho de 2011, a Lei n° 12.441 já vinha suscitando dúvidas e questionamentos em relação a sua aplicabilidade, extensão e limitação de responsabilidade.
O Projeto de Lei n° 4.605/2009, de autoria do Deputado Federal Marcos Montes, posteriormente transformado na Lei n° 12.441/2011, previa a inclusão no Código Civil do art. 980-A, §4°, com a seguinte redação:
Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente.
Esse parágrafo foi vetado pela Subchefia para Assuntos Jurídicos do Gabinete Civil da Presidência da República, em razão da expressão “em qualquer situação”, o que, segundo o entendimento exposto no referido veto, poderia “gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil”.
3.2 A constituição da EIRELI por pessoa jurídica
O mesmo PL nº 4.605/2009 estabelecia, ainda, a obrigatoriedade de o titular da EIRELI ser pessoa natural, ou seja, de acordo com a redação original desse projeto, apenas a pessoa física poderia constituir esse tipo societário. A redação do artigo, antes de sofrer alteração, era a seguinte: “Art. 985-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é o titular da totalidade do capital social e que somente poderá figurar numa única empresa dessa modalidade”.
Todavia, o texto original do artigo acima transcrito foi alterado, e quando da promulgação da Lei n° 12.441, o dispositivo legal foi inserido no Código Civil com a seguinte redação: “Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”.
A alteração acima apontada excluiu a limitação da constituição da empresa individual de responsabilidade limitada por pessoa natural, estabelecendo que qualquer pessoa pode constituir esse tipo societário, desde que atendidas as demais exigências legais. Esse entendimento reside no princípio da legalidade, consagrado no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Pelo princípio da legalidade, aplicado ao direito privado, os particulares podem fazer tudo aquilo o que a lei não proíbe, prevalecendo a autonomia de vontade. Em outras palavras, qualquer ação ou omissão só poderá ser exigida por lei.
Discordando desse entendimento, o Departamento Nacional de Registro do Comércio, excedendo na sua competência regulamentar, vedou a constituição de EIRELI por pessoa jurídica, através da Instrução Normativa nº 117/2011, que aprovou o Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. O item 1.2.11 da referida IN 117/2011 determina que “Não pode ser titular de EIRELI a pessoa jurídica, bem assim a pessoa natural impedida por norma constitucional ou por lei especial”.
Essa indevida regulamentação pelo DNRC cria para as pessoas jurídicas que desejem fazer uso da EIRELI um embaraço que somente poderá ser resolvido por via judicial. Nesse sentido, já há ações judiciais, buscando a autorização para a constituição de EIRELI por pessoas jurídicas.
Em razão do questionamento relativo à legitimidade da pessoa jurídica para constituir uma EIRELI, o Deputado Marcos Monte, autor da Lei n° 12.441/11, elaborou o Projeto de Lei 3.292/12, que altera o art. 980-A, que, se sancionado o referido PL, passaria a constar com a seguinte redação:
Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada-EIRELI será constituída por uma única pessoa, natural ou jurídica, titular da totalidade do capital social, que poderá ser nacional ou estrangeiro, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
Em sua justificativa para a proposição da alteração do art. 980-A, inserido no Código Civil por lei originada de um projeto de sua própria autoria, o Dep. Marcos Monte assim esclareceu:
Pois bem, como é natural no início de vigência de normas no País, antes mesmo de sua entrada em vigor, essa nova modalidade de empresa já vinha suscitando diversas dúvidas entre alguns órgãos governamentais, advogados e profissionais que atuam no segmento empresarial. Dentre elas, destacamos o questionamento sobre a possibilidade da “Eireli” ser constituída por pessoa jurídica, além de se indagar se tais empresas poderiam desempenhar atividades não empresariais, a exemplo de atividades intelectuais: de natureza científica, literária ou artística.
Entendemos que não deve haver qualquer óbice legal à possibilidade de uma pessoa jurídica, e não somente as pessoas naturais, poder figurar como titular de uma “Eireli”. Do mesmo modo, não pode haver obstáculos para que esta nova espécie empresarial possa ser constituída por uma pessoa jurídica de capital estrangeiro, uma vez que a própria Constituição Federal, em seu art. 172, admite os investimentos no País mediante o aporte de capital estrangeiro. Naturalmente, que aqui não se pretende estabelecer qualquer privilégio para o capital estrangeiro que eventualmente constituir uma “Eireli”, uma vez que o mesmo estará submetido igualmente aos ditames da Lei nº 4.131/62.
Diante da manifesta intenção do autor da lei que alterou o Código Civil, criando um novo tipo societário, de permitir não somente às pessoas naturais, mas também às pessoas jurídicas, de constituírem uma EIRELI e, mais ainda, especificar que o capital dessa empresa possa ser, inclusive, estrangeiro, poder-se-ia, aqui, aludir à hermenêutica jurídica, no que tange à vontade do legislador, mas esse é um tema polêmico, que tomaria muito mais espaço do que o que a autora dispõe para finalizar este artigo. Reduzir a uma ou duas páginas toda a celeuma em torno das contraposições entre a vontade do legislador (doutrina subjetivista) e a vontade da lei (doutrina objetivista) seria imprudente. Todavia, não se pode perder de vista que toda a discussão sobre o art. 980-A, tal como vige atualmente, fica enfraquecida diante do induvidoso e expresso esclarecimento do autor da Lei n° 12.441/2011 quanto à clara intenção de que, ao suprimir do texto original a condição de que o titular de uma EIRELI deveria ser uma pessoa natural, a finalidade desse novo tipo societário é, de fato, permitir que também a pessoa jurídica possa fazer uso dessa nova modalidade de sociedade (em que pese a palavra “sociedade” também não ser oportuna à EIRELI, visto que apenas uma pessoa é titular da integralidade de seu capital, e uma sociedade pressupõe a associação entre pessoas para a exploração de um negócio ou o atingimento de um fim comum).
Por fim, esgotando o tema neste trabalho, é de se aduzir que, além do PL 3.292/12 acima referido, outro projeto de lei está em andamento no Senado Federal, visando a alterar o mesmo art. 980-A do Código Civil. Trata-se do Projeto de Lei n° 96, de 12/04/2012, do Senador Paulo Bauer, que propõe aperfeiçoar a disciplina da empresa individual de responsabilidade limitada e para permitir a constituição de sociedade limitada unipessoal.
Segundo esclarece o Senador Paulo Bauer na justificação do Projeto de Lei n° 96/2012:
O caput do art. 980-A determina que a empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa, omitindo-se a palavra “natural”. Não foi esclarecido se a empresa pode ser constituída somente por uma pessoa natural ou se também pode ser constituída por uma pessoa jurídica.
A celeuma sobre a possibilidade de uma pessoa jurídica constituir uma EIRELI, como se percebe, ainda produzirá alguns capítulos adicionais, incluindo decisões judiciais, artigos de juristas, debates e os andamentos dos projetos de lei apresentados; enquanto isso, muitos empreendedores continuam no escuro, procurando uma luz (ou por um sócio para compor a tal pluralidade exigida por lei, para garantir-lhes o benefício da responsabilidade limitada ao capital da sociedade).
3.3 O capital mínimo
Outra questão controversa que a Lei n° 12.441/12 trouxe ao debate jurídico é a exigência de um capital mínimo para a constituição de uma EIRELI.
De acordo com o que determina o agora já famigerado art. 980-A, o capital de uma EIRELI não pode ser inferior a 100 vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Essa limitação tem gerado questionamentos de ordem jurídica e econômica.
Do ponto-de-vista jurídico, a discussão gira em torno de uma possível inconstitucionalidade dessa disposição legal, seja em razão de violação ao princípio da livre iniciativa, insculpido no art. 170 da Constituição Federal, seja por infringir o que dispõe o inciso IV do art. 7° dessa mesma Carta Política, que veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim. Nesse sentido, o PPS (Partido Popular Socialista) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4637) no Supremo Tribunal Federal, na qual requereu uma medida cautelar que impedisse a entrada em vigor da parte final do caput do art. 980-A da Lei n° 10.406/2002 (Código Civil), onde consta a exigência do capital mínimo, bem como a declaração definitiva da inconstitucionalidade dessa parte final, para fins de que o artigo retro mencionado tenha suprimido esse requisito obrigatório.
Do prisma econômico, de fato, a obrigatoriedade de capitalizar a EIRELI, de uma vez, no valor equivalente, nesta data, a quase R$ 70.000,00, exclui, sem dúvida alguma, os pequenos empreendedores da possibilidade de constituir uma EIRELI. Considerando que, segundo entendimento geral, essa nova forma foi editada com o propósito de permitir e facilitar o desenvolvimento econômico e social do país, acabando com as “sociedades fictícias”, essa restrição não parece ser sensata, nem tampouco estar alinhada com o propósito da criação da EIRELI. E mais: o fato de o capital inicial da EIRELI ser, obrigatoriamente, em patamar elevado, para, segundo os que defendem essa disposição, dar garantias aos credores, não acautela, na realidade, eventuais dívidas da empresa, já que, como se sabe, o capital declarado é tão somente nominal, restando congelado no tempo, diferentemente do patrimônio da empresa, que oscila para mais e para menos no curso da existência da empresa. Ou seja, conforme as palavras de Alfredo de Assis Gonçalves Neto:
A sociedade utiliza seu patrimônio para a realização de seus fins. Ao fazê-lo, esse patrimônio oscila de valor e se modifica a todo momento: cresce e definha de conformidade com as injunções do mercado ou com a expansão ou o encolhimento das atividades sociais. Contrastando com ele, o capital social é um valor permanente, uma cifra fixa que permanece como referencial do valor, não do patrimônio de cada dia, mas da massa patrimonial que os sócios reputaram ideal para a sociedade poder atuar. Assim, no momento da constituição da sociedade, capital e patrimônio têm o mesmo valor. Mas, iniciando-se a atividade social, o patrimônio oscila aumentando ou encolhendo, segundo as vicissitudes da atividade exercida, enquanto o capital mantém-se fixo, como um número, uma cifra constante e permanente.
Há os que defendam a exigência do capital mínimo, para evitar o uso da EIRELI como veículo para fraudar a legislação trabalhista, dentro da prática que se estabeleceu no país de empregadores exigirem de empregados que prestem serviços sob uma pessoa jurídica, para evitar os encargos trabalhistas e previdenciários decorrentes do vínculo empregatício. Essa vedação, no entanto, não socorrerá nem o empregado, nem a Previdência Social, já que a fraude, se intencionada, continuará a existir, travestida de sociedade limitada, com a figura do “sócio fictício”. Para que esse argumento fosse coerente, mister seria alterar as normas da constituição das demais sociedades, impondo, a todas, também, um capital mínimo (em que pese essa providência esbarraria no já mencionado art. 170 de nossa Carta Magna).
Tenha-se presente, dentro do debate acima referido, que o Deputado Marcos Monte, na justificativa para a apresentação do PL n° 4.605, de 2009, esclareceu que:
Pois bem, Senhores Parlamentares, valho-me das palavras finais do Prof. Guilherme Duque Estrada de Moraes para indagar por que esperamos tanto nesta Casa para disciplinar esse novo modelo de sociedade empresária em nosso País, que, por certo, trará grandes contribuições e incentivará a formalização de milhares de empreendedores que atuam em nossa economia de maneira desorganizada e sem contribuir devidamente para a arrecadação de impostos.
Diante desse disciplinamento legal, que ora propomos, acreditamos que o Estado terá grandes ganhos no aumento da arrecadação e a economia como um todo evoluirá com a formalização e melhor organização de um segmento importante dos negócios, que responde por mais de 80% da geração de empregos neste país, conforme dados do próprio SEBRAE.
Diante dessa manifestação de propósito, é, no mínimo, incoerente propor uma medida para beneficiar os “milhares de empreendedores que atuam em nossa economia de maneira desorganizada”, especialmente considerando que quem atua de “maneira desorganizada” não são os empreendedores com mais recursos financeiros, e sim, o oposto, se a medida já impõe, de saída, a obrigatoriedade de uma disponibilidade financeira da qual esses “milhares de empreendedores” não possuem.
Conclusão
Este artigo não tem a pretensão de esgotar o tema sobre as EIRELIs, mas trazer a debate as questões que limitam o uso desse novo tipo societário pelas pessoas a quem, teoricamente, se destina.
Necessário reconhecer a evolução da legislação pátria, que despertou para uma realidade paralela que, já de há décadas, vem prevalecendo em detrimento do desenvolvimento econômico. No entanto, é preciso ajustar os critérios que inspiraram a elaboração e a aprovação da Lei n° 12.441/2011 à sua aplicabilidade, entendendo, antes de tudo, os objetivos a serem alcançados com a criação da EIRELI. Do contrário, o espírito de fomentação do empreendedorismo que norteou essa iniciativa se perderá.
Referências Bibliográficas
Fontes
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