A idéia de um Judiciário ativista surgiu nos Estados Unidos aproximadamente no século XIX, mas veio a se consagrar somente no século seguinte, por volta de 1970. A Suprema Corte Americana revestiu-se do poder assegurado pela Constituição para pronunciar-se, ativamente, balizando os demais poderes federativos. O caso emblemático e mais citado ocorreu em 1803, em Marbury versus Madison, no qual nasceu a idéia, hoje disseminada em todos os Países democráticos, da supremacia da decisão judicial. Neste julgado abriu-se caminho para a “Judicial Review” que ancorou-se na possibilidade do Judiciário rever os atos do Congresso praticados em ofensa à Constituição.
Mais adiante, a persistência travada pela Suprema Corte a fim de implementar as ações afirmativas serviram, igualmente, para fortalecer a política de cotas. Ao longo das mudanças políticas sofridas nos Estados Unidos, desencadeadas, em sua maioria, pelo confronto entre os Poderes Judiciário e Executivo na década de 30, o Judiciário veio trilhando um caminho de efetivação de garantias e direitos estabelecidos em princípios e comandos constitucionais.
À exemplo dos norte-americanos, embora com um pouco de atraso, o Brasil passou a adotar, com as devidas adaptações, o caminho da “judicialização da política” inaugurado pelos Estados Unidos. Este termo vem sendo utilizado pela doutrina para definir o vínculo entre democracia e ativismo judicial. Em outras palavras, é o conceito que estabelece uma ampliação da atuação do Poder Judiciário, com farta ingerência na vida política e nas questões de forte destaque social.
Alguns fatores conjugados explicam esta nova perspectiva: o aumento da demanda por justiça, com a facilitação do seu acesso, o exercício mais pleno da cidadania, motivado pela mídia e pela conscientização popular, e a morosidade do Legislativo em agir, característica do sistema legislativo democrático, que exige um encadeamento de etapas para aprovação de uma nova lei.
A ampliação da ação judicial ocupando as lacunas deixadas pelo Legislativo, seja pela sua morosidade seja pela ausência de vontade política em regulamentar os dispositivos constitucionais de eficácia normativa limitada – que dependem de norma infraconstitucional para produzir efeito-, tem se tornado freqüente, gerando debates acalorados na doutrina acerca de sua adequação ao sistema de tripartição de poderes e ao princípio da neutralidade do Poder Judiciário.
Questionado sobre o tema, o jurista Dalmo Dallari, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, afirma que este fenômeno é conseqüência de “falhas graves” do Poder Legislativo. “O Legislativo é omisso, muitas das leis criadas são inconstitucionais, e decisões são tomadas por critérios políticos, em função de interesses imediatos“, avalia Dallari.
Há quem advogue que a prática de sucessivas decisões fora do âmbito do legislador negativo- função intrínseca ao julgador de uma Corte Constitucional- esbarraria no princípio da separação dos poderes, e que, ato contínuo, a perpetração da idéia de que o Supremo Tribunal Federal alargue suas funções a fim de criar deveres concretos para os cidadãos e para a Administração Pública sem a precedente discussão política no Congresso Nacional, ameaçaria os sustentáculos nos quais se firma o Estado Democrático de Direito.
Contudo, não há como negar que a expansão da ação judicial, invadindo esferas de outros Poderes é, pois, uma característica inerente as sociedades democráticas contemporâneas. A consagração de princípios constitucionais que elevam-se a condições de dogmas de um sistema normativo conduz à obrigatória “interpretação construtivista” termo cunhado pela professora Gisele Cittadino, na obra “Poder Judiciário: ativismo Judiciário e democracia”.
Este movimento é flagrante não apenas na mais alta Corte do País, mas, de forma menos constante embora não menos relevante, nos tribunais estaduais que cada vez mais têm proferido decisões firmadas em dispositivos constitucionais que asseguram, por exemplo, o direito a saúde, para determinarem que uma Secretaria Estadual forneça, regularmente, um determinado medicamento a paciente enfermo que não tenha condições de adquiri-lo.
A facilidade do acesso ao Poder Judiciário contribui, consideravelmente, para o aumento do número de ações desta natureza.Ainda citando a professora Cittadino, “os tribunais estão mais abertos ao cidadão que as demais instituições políticas e não podem deixar de dar alguma resposta às demandas que lhe são apresentadas”.
Não se arriscam a afirmar, todavia, os juristas que já debruçaram-se sobre a matéria, que a partir de agora inaugurar-se-á uma nova entidade pública, que assumirá funções não definidas constitucionalmente, numa espécie de amálgama da junção de dois poderes distintos. Atestam, por outro lado, que o clamor público pela efetividade de direitos positivados na Constituição conduziu a criação de um tipo inédito de atuação do Poder Judiciário, resultado do surgimento de um “sentimento constitucional”, na apropriada definição do professor Luis Roberto Barroso.
Muito embora ecoam vozes pela doutrina a criticar esta posição assumida especialmente pelo STF, não se pode negar que a esta Corte atribui-se a responsabilidade por corrigir eventuais equívocos que possam colocar em risco o Estado de Direito, a fim de manter a salvos o espírito da República e a democracia.
A fim de alcançar tal objetivo é preciso não desviar dos meios colocados a disposição do Judiciário pela própria Constituição, evitando abusos de procedimento. É possível e recomendável que se utilize os mecanismos processuais que a própria Constituição de 1988 instituiu e que permitem que se garanta eficácia aos seus princípios. Sem dúvida que este exercício demandará uma atuação do Poder Judiciário, mas dentro do balizamento constitucional e conjugado com os demais Poderes.
O ativismo do Judiciário é produto de uma sociedade participativa e consciente de seus direitos, reflexo do amadurecimento da democracia e de suas instituições. O exercício pleno desta cidadania, deve, pois, assumir não só os contornos relativos às pressões que tem sofrido os Tribunais, mas, sobretudo em invocar respeito e estrita obediência aos ditames constitucionais bem como em exigir uma atuação diligente e equilibrada de todos os Poderes, conforme a lição de Montesquieu.