RESUMO: Busca-se no presente estudo tecer ponderações e suscitar questionamentos sobre tema recente e controverso: os balizamentos da responsabilidade civil por atos cometidos virtualmente. Partindo da popularização da internet e da evolução das relações jurídicas construídas virtualmente, e passando pelo consumo eletrônico, que impulsiona o gigantismo do comércio virtual, chega-se ao fim da linha: as consequências dos atos perpetrados por milhares de consumidores internautas e pelos fornecedores desses serviços, bem como suas correlatas responsabilidades. A celeridade inédita da edificação deste novo paradigma trouxe inúmeros desafios a demandar respostas breves e eficientes do Direito, que ora se propõe a comentar.
1.Introdução
Poucos acontecimentos influenciaram tanto a humanidade nas últimas décadas como a internet. Hoje é difícil imaginar como realizar determinadas tarefas sem o auxílio da grande rede, sobretudo compra e venda de artigos como livros, CDs e, mais recentemente, até mesmo eletrodomésticos, roupas, perfumes e afins. Com a facilidade e rapidez em comparar preços e formas de pagamento, a compra virtual tem sido escolhida pela grande maioria dos consumidores, especialmente em datas festivas em que centros de consumo se tornam pouco atraentes diante da alta concentração de pessoas.
Os dados impressionam e refletem o gigantismo do comércio eletrônico: é uma fatia de mercado que já atinge 10 bilhões de reais/ano, e os números tendem a crescer ainda mais. Passada a fase inicial de descrédito e insegurança dos consumidores, que foram minimizadas com o acentuado investimento em segurança pelos fornecedores de serviços virtuais, impulsionou-se, ainda mais, o comércio eletrônico no país.
O aumento vertiginoso do consumo e as peculiaridades intrínsecas à internet resultaram no incremento de questões que desafiam os juristas, exigindo uma resposta tão rápida e eficiente como uma conexão de banda larga.
Inseridas neste cenário promissor, as relações de consumo travadas em meio virtual adquiriram um diferencial sobre as demais, encadeadas no mundo real, e que remonta a tempos longínquos em que negócios eram fechados com um aperto de mão e no fio do bigode: a confiança e a boa-fé dos contratantes. A confiança do consumidor em depositar seus dados pessoais, e a do fornecedor em saber que está lidando com o próprio consumidor, e não com um terceiro, que inapropriadamente se utilizou daqueles dados como se seus fossem. São esses dois fatores que, em síntese, servem de forma determinante para o êxito da operação jurídica realizada em ambiente virtual.
2. Os Contratos Eletrônicos
O contrato eletrônico se diferencia, pois, do comércio que conhecemos, apenas por ser realizado à distância e conduzido através de meios eletrônicos automáticos e impessoais, ou seja, somente quanto a sua forma e o modo de sua execução ou entrega, mantendo-se íntegro quanto aos demais requisitos. Centraliza-se justamente nestes dois aspectos – a realização do contrato e a tradição do bem – a problemática que circunda a questão.
Em razão de serem contratos por definição jurídica, as obrigações celebradas em ambiente virtual adquirem os mesmos pressupostos de validade que incidem sobre os contratos presenciais, previstos no artigo 104 do Código Civil, quais sejam, a capacidade das partes, a manifestação livre da vontade e a licitude e possibilidade do objeto.
No plano subjetivo, os requisitos essenciais para a sua validade exigem que sejam firmados por agentes capazes civilmente, bem como que as partes forneçam seu consentimento de forma adequada. Essa hipótese de validade do contrato é frequentemente arguida para afastar a eficácia dos contratos eletrônicos celebrados pelos incapazes civilmente, quando não amparados por seus pais ou responsáveis legais. Atrai-se, para a hipótese, a confluência principiológica citada acima e que permeia as relações jurídicas travadas neste meio, sendo o princípio da boa-fé objetiva um norteador para que seja possível atestar a veracidade dos dados prestados no ato da contratação virtual, já que o comércio eletrônico, por sua natureza, dificulta a conferência da identidade de cada um dos contratantes, em razão do volume das operações realizadas simultaneamente com milhares de pessoas.
Em uma provocação interessante sobre o tema, indaga se o menor, que teria afirmado durante a fase contratual que seria maior de idade, poderia, em momento posterior, requerer o desfazimento do negócio jurídico por nulidade, alegando sua condição de incapaz. A fim de esclarecer tal indagação, há que se distinguir os absolutamente incapazes dos relativamente incapazes, tal como o próprio ordenamento o faz, dosando proteção maior àquele que, menor de 16 anos, ainda não dispõe de maturidade e discernimento completamente formados.
Se relativamente incapaz, ou seja, se estiver, o menor, entre dezesseis e dezoito anos, não é possível que se utilize de sua malícia para se desobrigar, consoante previsão expressa do Código Civil em seu artigo 180, que textualmente dispõe: ‘O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”. Neste caso, o legislador previu que o menor, na iminência de atingir a maioridade, já a teria em parte, aumentando seu nível de discernimento na medida em que se aproxima em alcançá-la, ao contrário do absolutamente incapaz, hipótese do menor de dezesseis anos. Se age com malícia a ponto de convencer outrem, restaria superada a deficiência de maturidade que o legislador visa proteger. Em outras palavras, a malícia supre a idade (malitia supplet aetatem) para os relativamente incapazes.
Conclui-se que, para o legislador, a exteriorização da manifestação da vontade das partes é item essencial para a constituição do negócio jurídico. Neste particular, face à imaterialidade do contrato, o aceite não pode se dar de forma presumida ou implícita, o que configuraria uma violação aos direitos básicos do consumidor. É dever dos fornecedores desta categoria de serviços, criar ferramentas que possibilitem aferir o consentimento exarado pelo consumidor, inclusive para permitir o exercício do direito de arrependimento, que, nos contratos celebrados à distância, é de sete dias, nos termos do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor.
A prova do aceite dos termos do contrato eletrônico depende, portanto, do consentimento prévio e expresso do consumidor, que deve ser objeto de alguma ferramenta de aceitação apresentada ao longo do processo de contratação, que indique ou demonstre que o internauta aceitou e entendeu as regras da oferta anunciada, optando por adquirir aquele produto ou serviço.
O click box ou, em tradução livre, o “clique na caixa”, um quadrado no qual o comando do consumidor é exigido para prosseguir à fase seguinte do contrato, tem sido utilizado como prova do prévio conhecimento e aceite por parte do consumidor. Esta prova pode ser materialmente documentada por meio de uma impressão da página, mediante o acionamento da tecla de print screen ou, como tecnicamente recomendado, através de elaboração de ata notarial que ateste a autenticidade dos dados lançados naquela determinada página eletrônica, por meio da constatação formal feita por um notário, imbuído de fé pública.
Malgrado as dificuldades físicas de comprovação da existência do contrato eletrônico, as alternativas retro citadas aos poucos têm sido criadas, seja pelos próprios prestadores desta categoria de serviços, conforme os exemplos citados acima, seja pelos operadores do Direito, a fim de equalizar os entraves desta relação jurídica, fato de grande interesse para ambos contratantes.
Neste sentido, é imperioso que a prova do aceite do contrato eletrônico não seja implícita ou subentendida, posto que, nesta hipótese, poder-se-ia enquadrá-la na disposição legal de amostra grátis, nos termos do dispositivo legal 39, III, do Código de Defesa do Consumidor e, nesta condição, o contrato não o obrigaria.
3. O fenômeno do Chargeback
Outro fato de grande relevo que afeta, em especial, os prestadores de serviços em ambiente virtual, é a estratégia de internautas que usam a má-fé e a malícia como estratégia predatória, a fim de satisfazer seus ímpetos consumistas. Indivíduos que realizam pedidos através do uso de seus próprios cartões de crédito, e que, em seguida à finalização da compra e venda, cancelam as compras junto às administradoras, sob a alegação de que teriam sido feitas a sua revelia, por obra de terceiros. O modus operandi da realização do pagamento ou cancelamento efetuados em meio virtual têm facilitado a execução dessas fraudes. Isso porque o cancelamento da compra junto à administradora processa-se, normalmente, em um lapso temporal posterior à conclusão do processo de compra junto aos comerciantes virtuais, que, mesmo sem a confirmação de pagamento, liberam o produto ao destinatário final. Findo o prazo regular de faturamento daquela compra, o comerciante aguarda que a administradora de cartão de crédito repasse o valor creditado em seu favor da compra já cancelada, e a débito do consumidor que, a esta altura, já recebeu o produto ou já gozou do serviço. O cancelamento daquela compra e o estorno ao consumidor do valor debitado, conhecidos como chargeback, além de gerar um prejuízo material ao comerciante, poderá servir como fator de rescisão de seu contrato com a administradora, que rejeita a manutenção de vínculo contratual com comerciantes que tenham um histórico de elevado índice de ocorrências desta natureza.
Não bastasse o prejuízo sofrido pelo não recebimento pelas vendas efetuadas, o lojista ainda pode ser surpreendido pela situação de passar da posição de lesado para a de devedor da administradora. Este é um problema grave e crônico que tem se alastrado pela rede, e que teria algumas soluções passíveis de estudo. Uma delas seria a adoção de uma ferramenta de análise de risco, ou mesmo um facilitador de pagamento, que garanta as vendas aprovadas, existindo alguns exemplares já em operação pela internet.
O desafio maior dessas transações é, portanto, criar mecanismos de confirmação da identidade do consumidor/adquirente que sejam prévios à conclusão do negócio jurídico, e que condicionem a sua validade e eficácia, tal como cláusulas de condição suspensiva, nas quais o efeito da obrigação principal permanece em suspenso, aguardando o advento de fato futuro e incerto. Pendente a condição suspensiva, não se terá direito adquirido, mas, apenas, uma expectativa a esse direito. A eficácia do ato ficaria suspensa até que se realizasse o evento, que é a confirmação da identidade do consumidor. No momento em que o acontecimento previsto se verificasse, ter-se-ia, então, o aperfeiçoamento da relação jurídica.
Outra possibilidade viável de confirmação de identificação é a exigência de abertura de cadastro, com a inclusão de dados pessoais como identidade e CPF, que deveriam ser revistos obrigatoriamente pelo consumidor, através de acesso a um link de confirmação. Ainda que também esta alternativa seja suscetível de falhas ou fraudes, os riscos seriam consideravelmente minimizados e, ainda, colocariam a preocupação do lojista com segurança como requisito primeiro da realização do negócio jurídico, ou seja, seria uma prova reflexa da boa-fé objetiva, que, se já é compulsória em negócios travados no mundo real se faz indispensável quando realizados virtualmente.
Não são poucos os lojistas que já executam este modelo de confirmação em seu negócio, porquanto além de alcançarem uma posição de credibilidade perante o consumidor, ainda utilizam os dados obtidos em negociações com parceiros, já que um numeroso banco de dados é, hoje, um dos mais disputados tesouros no ambiente da internet, negócio de cifras astronômicas, que consiste no envio das malas diretas e de emails indesejados de propaganda, um mercado que demanda igualmente uma urgente regulação normativa realmente eficaz.
4. Teoria da Aparência x Teoria do Risco
A aplicação da teoria da aparência, utilizada mais como uma alternativa proposta pela doutrina e pouco aceita pela jurisprudência para situações de fraude na internet, é, ainda que minoritariamente, uma saída jurídica possível ao lojista que não disponha de elementos técnicos capazes de identificar o verdadeiro causador do dano e venha a ser responsabilizado pelo lesado, que, na qualidade de consumidor por equiparação, se torne vítima do uso ilícito de seu cartão de crédito. A justificativa consiste em alegar confiança naquele que se apresenta na qualidade de fulano ou sicrano. Contudo, diante das inúmeras possibilidades de confirmação de identidade que hoje já existem à disposição do empresário deste ramo de negócios, a arguição desta teoria como forma de defesa dificilmente se sustenta.
A jurisprudência sempre esteve inclinada a não reconhecer a teoria da aparência como excludente de responsabilidade dos prestadores de serviços em âmbito virtual, justamente por conta da crescente evolução e modernização dos sistemas de segurança, que permitem, atualmente, rastreamento de códigos de Internet Protocol (IP) e outras técnicas que, se não identificam a origem do acesso, possibilitam, ao menos, chegar muito próximo à procedência e identidade daquele usuário.
Assim, muito antes de se ampliar os instrumentos de segurança e proteção de dados na internet, a jurisprudência já aplicava a teoria do risco do empreendimento aos comerciantes virtuais, sob o argumento de que os fornecedores de bens e serviços atuantes no mercado têm o dever de responder pelos fatos e vícios inerentes a sua própria atividade, independentemente da comprovação de culpa. Se todos os provedores de serviços de internet têm o dever de utilizar tecnologias apropriadas aos fins a que se destinam, de acordo com a atividade que exercem, considerando-se o estágio de desenvolvimento tecnológico adequado ao momento da prestação do serviço e, se é um negócio lucrativo que lhes permite investir continuamente em tecnologia para aperfeiçoamento dos sistemas e maior blindagem de seus usuários, não podem basear-se em técnicas primárias e intuitivas de confiança para execução do seu negócio. Seria como usufruir do bônus sem pagar o ônus.
É, pois, parte integrante do serviço prestado pela internet a preservação de dados técnicos de conexões e acessos e os dados cadastrais dos usuários, viabilizando a identificação ou localização dos responsáveis por atos ilícitos, sujeitando-se o fornecedor a responder solidariamente pelo ato ilícito cometido por terceiro que não puder ser identificado ou localizado, em razão desta conduta omissiva.
Em outras palavras, o serviço prestado virtualmente difere daquele fornecido no ambiente real justamente pela obrigação do fornecedor de identificar os usuários através de suas conexões de acesso e de instalar e manter atualizados programas de proteção contra invasões dos servidores por terceiros, não sendo, no entanto, responsável na hipótese de ataques inevitáveis decorrentes da superação da tecnologia disponível no mercado, cabendo-lhe o ônus de demonstrar que seus sistemas de segurança eram suficientemente adequados à tecnologia existente na época em que ocorrida a invasão, exclusão de responsabilidade legal conhecida como “risco de desenvolvimento” e prevista no artigo 12, § 1º, III do CDC.[1] .
5. Privacidade na internet x “Publicização” da vida privada
Em contrapartida, a questão mais controvertida que gravita em torno do consumidor é a manipulação ou o uso não autorizado dos seus dados pessoais, mormente em sites de relacionamento, muitas das vezes com atos difamatórios danosos a sua imagem e honra.
Com a propagação de ofertas de serviços virtuais, conclamando a inclusão e cadastro de dados dos navegadores ávidos por consumo, modificou-se o cenário e o status da privacidade na internet, e hoje a regra predominante é a de induzir o compartilhamento da vida privada ou a sua publicização, alçando indivíduos comuns a protagonistas de suas próprias vidas, vinculando imagens, informações pessoais, e tudo o mais que for possível nas redes sociais.
A privacidade se deslocou de sua definição original, que era o direito em não ser importunado, para a legitimidade do monopólio do controle das informações que dizem respeito a si próprio. Esta constatação vai de encontro ao uso indiscriminado de dados entre empresas parceiras ou coligadas, muitas das quais preveem, inclusive, em seus contratos de co-branded[2], o compartilhamento dessas informações, como se suas fossem, numa rede invisível que abrange acordos entre servidores e provedores.
A fim de melhor conceituar a problemática da privacidade, faz-se necessário distinguir, inicialmente, a natureza das informações confiadas aos servidores, que podem ser relativas a situações existenciais, como opção sexual, contaminação por doenças infecciosas, por exemplo, ou a aspectos patrimoniais da atuação humana, como sigilo bancário, telefônico etc. Ainda que ambos os dados necessitem de igual proteção jurídica, a dimensão da publicidade dos dados sensíveis é, em regra, para a grande maioria das pessoas, mais devastadora do que a divulgação dos aspectos patrimoniais. Em especial no ambiente virtual, a disseminação de qualquer elemento atinente à privacidade do indivíduo possui projeção incalculável e de difícil reparação, em razão da peculiaridade do meio de divulgação e da dificuldade de seu rastreamento. Hoje em dia, pior do que palavras ao vento, são palavras na internet que não voltam nunca mais.
Aos poucos, tem se visto um crescimento vertiginoso de fraudes desta natureza alcançando os Tribunais pátrios. Indivíduos que utilizam informações pessoais de outrem e as deturpa ou delas se apropriam, criando perfis inverídicos ou fazendo-se passar por figuras públicas ou celebridades, atribuindo, a essas, atos ou fatos igualmente inverídicos.
O que se constata das decisões judiciais proferidas sobre o tema é que, cada vez mais, se cobra o “tributo da segurança máxima” no serviço de hospedar perfis em redes sociais. A fim de afastar sua responsabilidade na propagação do dano, o provedor de hospedagem deve, as suas expensas, utilizar sistemas de proteção idôneos para defender o usuário, além de alertá-lo sobre riscos e oferecer informações sobre como é possível evitar a ocorrência deste ilícito.Acaso os equipamentos técnicos utilizados, bem como os programas de computador do provedor de hospedagem, sejam obsoletos ou desatualizados, os serviços não oferecerão a segurança que deles se poderia esperar, o que, por si só, já fará incidir a responsabilidade daquele fornecedor. De igual forma, caso venha a ser omisso na prestação de informações consideradas essenciais e que poderiam acautelar o consumidor, ele também responderá civilmente.
Há quem advogue pela adoção compulsória de estratégias simples de segurança, como a inclusão do número do CPF do usuário ao criar seu perfil. Ainda assim, seria possível inserir um CPF falso ou de terceiros, mas exigiria mais técnica do que simplesmente forjar um email fraudulento, criado especialmente para a finalidade. Outra solução possível seria a exigência de certificação digital para o acesso, que já foi defendida em uma das versões do projeto de lei de cibercrimes, mas acabou sendo deixada de lado, devido a protestos provenientes da bancada dos provedores. Para alguns, o anonimato, ainda que parcial, na internet, é próprio da natureza da rede, e deve, na verdade, ser monitorado e, não, extinto, posto que sempre haverá meios de se rastrear e/ou fraudar mensagens ou usuários.
A dificuldade neste rastreamento, em razão do volume de operações realizadas simultaneamente e sem que haja um registro prévio, unificado e obrigatório, conduz a decisões judiciais antagônicas, ora reconhecendo os limites dos provedores e sua impossibilidade técnica de aferir tais informações, ora responsabilizando-os a partir da teoria do risco integral. Este posicionamento, um tanto quanto esquizofrênico, é resultado da ausência de conhecimento técnico a respeito da matéria, somada com a carência de regulação neste setor.
O volume de problemas e questões jurídicas que surgem a reboque da democratização da internet e, simultaneamente, a imposição de uma rede mais segura para que este crescimento não sofra um processo reverso, impõe a urgente aprovação do marco civil da internet, projeto de lei ambicioso que se propõe a regular a neutralidade da rede, a proteção e identificação dos usuários, a salvaguarda de dados pelos provedores, e a função social da rede, a responsabilidade civil dos usuários e provedores, dentre outras questões de relevo.
6. O Marco Civil da Internet
O Projeto de Lei 2126/2011 traz algumas respostas aos problemas mais graves de fraude na internet, muito embora sem esclarecer em minúcias os procedimentos a serem adotados. A Seção que trata de responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, por exemplo, assinala que o provedor de aplicações – leia-se provedor de conteúdo, que hospeda um serviço – somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo estipulado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. Neste aspecto, o Projeto de Lei não se coaduna integralmente com a jurisprudência, o que, em tempos de ativismo judicial[3] , pode vir a tornar a lei obsoleta, ou aplicada conforme interpretação do STJ, o que, ao final, lhe esvazia a força coercitiva original.
Os Tribunais inferiores nem sempre têm eximido a responsabilidade dos provedores de conteúdo com esta simplicidade. O uso do Código de Defesa do Consumidor como legislação aplicável a situações de fraude na internet até hoje tem imputado, ao fornecedor de serviços, responsabilidade na forma objetiva, com raríssimas possibilidades excludentes, muitas das vezes em hipóteses mais acadêmicas do que práticas.
A questão recebe um tratamento um pouco diverso quando alcança a Corte Superior. O STJ entende culposo o agir de quem não disponha de meios de prevenção de danos a terceiros, e, ato contínuo, que a criação e atualização de ferramentas de segurança são deveres do empresário que atua neste ramo, sob pena de responder pelos atos danosos. Retirar do ar a fonte do dano, neste raciocínio, não seria suficiente a compensar os prejuízos sofridos durante a sua exibição. Notadamente que, ainda sob a égide da legislação consumerista, podendo, o usuário ou a vítima do consumo a ele equiparada, optar entre acionar o terceiro fraudador, que, em regra é uma pessoa física, e o sítio de internet que vinculou a ofensa, não há dúvidas de quem irá escolher, assim como de que não se satisfará com a mera interrupção da vinculação do dano, sendo justa e legítima sua expectativa em ser indenizado pelos danos causados pela exibição do ato danoso.
Mais recentemente, porém, com a análise recorrente de processos judiciais sobre o mesmo tema, o posicionamento do STJ começou a acolher tendências mais moderadas, entendendo que o dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se aplicaria a responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor ou no artigo 927 do Código Civil. No entanto, alerta a Corte em seus julgados, é obrigação dos prestadores de serviços propiciarem meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e adotando providências que estejam ao seu alcance (leia-se, conforme a possibilidade técnica disponível) para a individualização dos usuários do site.[4]
Outrossim, o tratamento que foi dado à responsabilidade civil do provedor de aplicação rompe um paradigma já resolvido pela Justiça brasileira, conquanto determina que só haverá responsabilização por provedores de aplicação caso haja ordem judicial expressa sobre a retirada do material e este não a cumpra, em contrapartida ao entendimento assentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que estabelece o dever do provedor de aplicação em tomar providência de retirada de 24h até 72h, preventivamente, sob pena de ser responsável pelos danos decorrentes.
A análise do mencionado projeto leva a concluir que, dentre as inovações que mais causarão impacto, estão os limites da responsabilização do provedor de conteúdo, consideravelmente reduzidao se comparados à posição vigente da jurisprudência; a consolidação da neutralidade da rede, que impede privilégios de tráfego ou controle de conteúdo que circula na Internet, além do advento do direito ao esquecimento digital, quando há a solicitação por parte do usuário para a exclusão de todos os dados que o provedor de aplicação armazenar sobre si, o que também pode gerar insegurança jurídica caso não exposto de forma adequada.
Se aprovado sem sofrer alterações, o Marco Civil na internet já nascerá desatualizado, deixando que a jurisprudência esclareça as questões que deixou sem resposta.
7. Considerações finais
A inovação tecnológica, aliada à globalização das relações comerciais, criou uma nova modalidade de comércio celebrado à distância, através de meios eletrônicos. A reboque dessas mudanças, surgiram inúmeras questões atinentes à responsabilidade civil, que se colocaram perante a doutrina e a jurisprudência a exigir uma resposta do Direito, sobretudo no que se refere às fronteiras dos negócios celebrados virtualmente e à extensão da responsabilidade dos novos protagonistas deste cenário.
Na análise deste novo quadro, alguns antigos princípios voltam a ocupar lugar de destaque, tais como o princípio da boa fé objetiva e o princípio da confiança, materializado, este último, na teoria da aparência. Tais princípios permeiam todas as relações mantidas neste meio em face de sua especificidade, assegurando uma expectativa legítima da parte sob o ponto de vista da segurança e informação, desde a fase pré contratual até a pós contratual.
A complexidade e a amplitude destas relações jurídicas, por outro lado, exigem mais do que princípios norteadores, e a utilização da legislação protetiva do consumidor tem sido a argamassa, e a jurisprudência, o tijolo usados, atualmente, na construção dos balizamentos da responsabilidade civil em meio virtual, aplicando-se, integralmente, todos os seus institutos, destacando-se, dentre outros, a inversão do ônus da prova, a responsabilidade civil objetiva, o direito de arrependimento, e os princípios regentes deste Diploma, especialmente o direito a informação.
Neste esteio, o provedor de conteúdo que procede à venda de seus próprios produtos e serviços em seu website está enquadrado na categoria de fornecedor de serviços do artigo 3º do CDC, podendo vir a ser equiparado ao comerciante, na forma do art. 13 do mesmo Diploma Legal.
As excludentes legais previstas na legislação protetiva do consumidor, em especial o risco de desenvolvimento, podem ser igualmente admitidos em defesa dos provedores de conteúdo, sobretudo no que toca aos produtos e serviços que garantam a segurança das relações negociais realizadas por meio da internet, considerando-se a rápida mutação e evolução das tecnologias, desde que sua periculosidade se revele de verificação objetivamente impossível.
Os limites da responsabilidade do provedor de conteúdo, por sua vez, balizam-se pela sua ingerência e possibilidade de intervenção no conteúdo incluído pelos seus usuários e, ainda, por manter sistemas atualizados e eficientes de segurança dos dados que lhe foram confiados, podendo ter sua responsabilidade reduzida ou mesmo excluída em caso de acionamento judicial, se restar comprovado que agiu de acordo com essas orientações.
O Projeto de Lei 2126/2011, mais conhecido como Marco Civil da Internet, será um reforço à legislação em vigor, e promete modificar o atual estado de insegurança jurídica sobre o tema, com a definição de uma série de direitos e obrigações de cada um dos componentes do ecossistema digital, reforçando direitos e garantias já estabelecidos pela Constituição Federal, dentre eles, o direito dos usuários à liberdade de expressão, determinações a respeito da guarda de registros de conexão, e proteção de dados pessoais, responsabilidade sobre os conteúdos publicados e a consolidação da neutralidade da rede.
Caberá ao PL enfrentar os principais problemas referentes à tutela dos direitos no âmbito da internet que se relacionam a (i) identificação e localização do usuário responsável pelo ato ilícito; (ii) remoção ou o bloqueio de acesso a conteúdo lesivo; (iii) dimensão do dano moral causado pela vinculação do ato reputado como danoso; (iv) o ônus da prova nas questões técnicas relacionadas ao funcionamento da rede; (v) os limites do sistema jurídico e da jurisdição aplicável.
Embora seja da ciência jurídica o aprofundamento de discussões acerca de questões sociais que deságuam na formação das leis, nas relações jurídicas construídas virtualmente este debate é ainda mais profícuo, diante da multiplicação de hipóteses que nascem do encadeamento de possibilidades que a rede oferece.
Ainda que timidamente, as iniciativas legislativas e o entendimento da jurisprudência vão, pouco a pouco, desenhando uma resposta do Direito às questões inovadoras trazidas com o surgimento e a popularização da internet no país.
Referências Bibliográficas
Berenguer, Alexandre Vianna. Os contratos eletrônicos como relação de consumo – Autor: Alexandre Vianna Berenguer. Clubjus, Brasília- DF: 18 de junho de 2009. Disponível em http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver = 2.24272. Acesso em 12 fev.2013;
Leonardi, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005;
Lorenzetti, Ricardo L. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004;
Marques, Cláudia Lima. Confiança no Comércio Eletrônico e a Proteção do Consumidor – Um Estudo dos Negócios Jurídicos de Consumo no Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004;
Martins, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet, São Paulo: RT, 2008;
Peck, Patrícia. Impactos do Marco Civil na Internet – Autor: Patrícia Peck, São Paulo – SP: 15 de fevereiro de 2013. Disponível em: http://idgnow.uol.com.br/blog/digitalis/2013/02/15/impactos-do-marco-civil-da-internet Acesso em 28 fev.2013.
[1] Antônio Herman Vasconcellos e Benjamin, conceitua risco de desenvolvimento como: “aquele risco que não puder ser cientificamente conhecido ao momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto”. (BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Comentário ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991.)
[2] Contratos de parceria.
[3] Ativismo Judicial consiste em uma postura proativa do Poder Judiciário, que interfere nos demais Poderes, reflexo de uma sociedade em que há uma judicialização de conflitos, onde a palavra final será sempre aquela que vier dos Tribunais.
[4](trecho do voto do Ministro relator Sidnei Beneti):
“No caso em tela, o Acórdão recorrido asseverou que ‘ A recorrida se torna solidariamente responsável pelos prejuízos de ordem moral causados ao recorrente na medida em que não garante ao usuário a segurança necessária, permitindo a vinculação de conteúdo extremamente ofensivo. Ao deixar de fornecer a identificação do usuário ofensor, a empresa está compactuando com sua atitude, restando configurado o dever de indenizar.’
Todavia, consoante consta das razões de decidir da sentença, enquanto há inequívoco interesse do autor em descobrir o autor da ofensa, da parte da Ré, há a obrigação de cessar a ofensa. Nos seus termos (e-STJ fls. 263):Quanto ao fornecimento do endereço dos participantes das relações jurídicas entre as partes, observo que a ré não tem a obrigação de informá-los, desde que cessada a lesão. Há inequívoco interesse do autor em descobrir o autor da ofensa; da ré, entretanto, há a obrigação de fazer cessar a ofensa…
Nesse sentido, o julgamento do Resp 1.175.675/RS, Quarta Turma, publicado no DJe 20/09/2011, Rel. Min. Luís Felipe Salomão: Nesse ponto, ressalto, uma vez mais, que não se afirma que há dano moral imputável ao provedor de internet (administrador de rede social), já no momento em que determinada mensagem é postada na rede. Nesse momento há o dever de o provedor retirar tal mensagem do seu ambiente virtual, mas sua responsabilização civil vai depender de sua conduta, se omissiva ou não, levando-se em conta a proporção entre sua culpa e o dano experimentado por terceiros (art. 944, parágrafo único, do CPC)”
Recurso Especial nº 1.306.066- MT (2011/0127121-0), Rel. Min. Sidnei Beneti