Autor Rafaella Marcolini
Apesar das especificidades culturais, que adaptam e modificam rituais de luto e despedida, o culto aos mortos, e o modo como lidamos com a memória têm sido constantemente modificados diante do surgimento de novas tecnologias, instigando os operadores do Direito a lidar com desafios legais e morais no enfrentamento da questão.
O enfrentamento da morte e seus efeitos jurídicos é tema tão antigo quanto a humanidade. Apesar das especificidades culturais, que adaptam e modificam rituais de luto e despedida, o culto aos mortos, e o modo como lidamos com a memória têm sido constantemente modificados diante do surgimento de novas tecnologias, instigando os operadores do Direito a lidar com desafios legais e morais no enfrentamento da questão.
Sêneca, um dos grandes pensadores do Império Romano, filósofo estoico e grande advogado, refletindo sobre a finitude da vida, tendo, ele próprio, se suicidado, segundo os historiadores, por ordem direta do Imperador Nero, afirmou “não é da morte que temos medo, mas de pensar nela”. A ideia de que perecemos, e que, ao final, voltaremos ao pó de onde viemos, sempre foi motivo de assombro e de incredulidade, quase na mesma intensidade. O medo da morte repentina, da morte com sofrimento, da morte sem despedida, nos faz excluir, na rotina dos dias, a sua possibilidade, que é, todavia, tão presente como a própria vida. E, uma vez surpreendidos por ela, nos refugiamos em ritos de passagem, em vivências de luto, em respostas formuladas pelas religiões, que servem de anestesia no doloroso enfrentamento daquilo que não entendemos.
Mas não é só a saudade que aflige àqueles que ficam depois da passagem de um parente ou amigo querido. As providências burocráticas, os efeitos sucessórios, a divisão patrimonial, a solução prática de problemas, em um momento em que a fragilidade da existência se abate sobre nós, é mais um fator que nos impele a manter uma distância segura das margens de qualquer reflexão funesta.
Mas é preciso seguir. No mundo digital em que atualmente vivemos, grande parte desse acervo, ao contrário da nossa impermanência, nos ultrapassa, e se torna perene.
Passado o luto, há como manter memórias, preservar legados, inspirar o caminho e a história daqueles que ficam, e dentre as ferramentas possíveis, o Direito oferece respostas.
A professora Julia Costa de Oliveira Coelho, em sua tese de mestrado denominada “Direito ao Esquecimento e seus mecanismos de tutela na internet” afirma, com propriedade:
“É interessante notar que a liquidez que inunda o mundo acaba por tornar alguns valores, como a vida íntima, surpreendentemente fluidos e outros, como a liberdade de expressão, extremamente rígidos. Fato é que, no decorrer da história, a sociedade brasileira, assim como tantas outras, padeceu dos males paradoxais de insuficiências e excessos”1.
A autora faz referência a momentos pendulares da história brasileira: num extremo, o regime militar, opressivo, reacionário, que encolhia direitos à liberdade em contraponto ao avanço da publicização da vida privada, no extremo oposto, que veio com o advento das redes sociais, e a correlata expansão da voz dos indivíduos. Deparamo-nos com a atual versão da internet 2.0, em que qualquer cidadão pode produzir conteúdo, e há quem, inclusive, advogue pelo direito até mesmo a propagar fake news. Entre ambos, uma distância de pouco mais de meio século,
Adaptar, dentro de um sistema jurídico que caminha a reboque das transformações sociais, tamanhas mudanças – políticas, culturais, estruturais – e costurar um tecido legislativo que ampare e contemple tantas modificações em curto espaço de tempo, além de desafiador, promove inúmeros questionamentos e provocações. É preciso avaliar as exatas medidas da dosagem – no caldeirão de direitos em choque – entre progresso/modernidade e privacidade/dignidade do indivíduo.
Nessa evolução digital, o eixo da informação privada referente ao indivíduo deixa a área do sigilo, na qual sempre habitou, e passa para a área de circulação pública, exigindo, a partir daí, que se apresente algum controle legal, para inibir abusos ou excessos2. A discussão sobre memória post mortem surge nesse momento, em que se lançam sementes sobre como lidar com dados e informações de cunho íntimo lançados pela própria pessoa na internet, depois que ela morre. Qual seria a natureza jurídica desse Big Data, e como enquadrá-lo num regime sucessório? Esse é o desafio.
Num mundo onde convivem realidade virtual e realidade presencial ou real, a persona digital pode suplantar a persona real. Por meio da projeção de imagens e símbolos – foto, texto, voz, preferências musicais, perfil político e ideológico – é possível que se crie um avatar pessoal, repleto de filtros, em que traços pessoais que desaprovamos em nós mesmos são apagados ou atenuados, e passamos a ocupar o chamado “corpo eletrônico”, assim batizado por Stefano Rodotá. O festejado jurista define a origem do termo:
“Há uma difundida e persistente dificuldade social em metabolizar as inovações científicas e tecnológicas quando estas incidem sobretudo na maneira de nascer e morrer, na construção do corpo na era de sua reprodutibilidade biológica, na própria possibilidade de projetar a pessoa.”3
A possibilidade de coexistência da identidade real e a digital permite que seja criado um banco de dados permanente, que decorre da reunião de páginas digitais e perfis de rede social que servirão como memória digital do falecido no futuro.
Tributos pós morte com o legado da história digital do indivíduo já existem em plataformas digitais, mas ainda provocam controvérsia entre aqueles que entendem ser um ato impertinente e mórbido manter perfis de falecidos em contraponto a quem advoga a favor, por enxergar, neles, uma homenagem ou uma forma de cultuá-los.
A despeito de ser um direito personalíssimo e que integra o rol de direitos da personalidade – que, pelo artigo 6º do Código Civil4 – extingue-se com o óbito há uma parcela da doutrina que reconhece, em alguma medida, a tutela pós morte dos direitos à personalidade
Isso se explica, em parte, porque nesses novos tempos há uma conotação híbrida dessa memória, que agora coabita ambas as esferas, pública e privada. Naturalmente que o fato de se participar de qualquer bolha digital em vida, não significa uma autorização implícita e perene para que também sua memória seja eternizada por esse meio, tanto que a política das redes e o avançar legislativo na matéria apontam para a mesma direção: de autorização em vida para que seja definido o destino do perfil pós morte em rede social. Mas a mera faculdade de se poder escolher pela perenidade dos próprios dados cria um desafio para o operador do direito, timidamente enfrentado até o momento pelo legislativo, e que abre uma janela de possibilidades que até então não existia: a de se manter dados pessoais circulando ativamente após o seu titular deixar de existir.
Sinal dos tempos. A maior característica da sociedade atual – definida como líquida para Bauman5 – é justamente o deslocamento do conteúdo privado para acesso público, criando verdadeiras “plataformas de memória”.6
Seja como for, e perguntas deixadas à filosofia, o direito a ser quem se é, em todas às suas formas, é, certamente, um dos pilares mais robustos do direito à personalidade: contém outros direitos igualmente sagrados numa sociedade democrática: livre pensamento, manifestação, direito a associar-se, a exercer sua religião, a amar quem quiser. Finca raízes na própria dignidade humana, a mãe de todos os demais direitos.
Tais direitos, todavia, para a legislação civil, encerram-se com a morte do indivíduo, tendo sido assegurados com o seu nascimento, e exauridos ao longo da vida (que todos os exerçam em plenitude, portanto). Mas, diante de tamanhos desafios propostos nessa nova sociedade digital, há quem defenda que, apesar da morte, o corpo da pessoa, a sua imagem e a sua memória podem influir no curso social e perdurar no mundo das relações jurídicas.
Naturalmente que direitos associados à existência, como integridade física, locomoção, saúde, não perduram depois do falecimento do seu titular. Mas, outros, como dignidade, bom nome, honra, permanecem, ainda que o sujeito de direitos tenha falecido.
É uma ideia relativamente comum, quase inata à nossa humanidade, a de que o falecido deve ser preservado, caso seja alvo de algum comentário maldoso ou crítica injuriosa porque, acima de tudo, não pode mais se defender. Assim como é igualmente possível imaginar proteger a dignidade de quem, depois de morto, foi objeto de ofensas ou interpretações maldosas, que possam custar uma mácula em sua memória. Caso, por exemplo, do apresentador de televisão Augusto Liberato, que, após uma morte súbita em um acidente doméstico em 2019, teve sua vida íntima devassada, com a revelação de informações sobre sua intimidade sexual jamais compartilhadas pelo próprio enquanto vivo. É o outro lado da moeda, em que a memória do indivíduo revela o que o próprio titular jamais tornou público.
De um jeito ou de outro, boa parte da doutrina afirma que a pessoa morta não tem direitos à personalidade, e tampouco pode ser vítima de difamação, salvo de forma indireta, quando pessoas do círculo íntimo do falecido se ofendem com críticas ou ofensas direcionadas a ele.
A memória do falecido, por sua vez, é exceção, por ser um reflexo de sua dignidade, mantendo-se mesmo após seu último suspiro, sendo concedido, aos herdeiros, a legitimidade em protegê-la. Discussão que habita parte da doutrina é sobre a titularidade do direito violado, se direito próprio ou de terceiros, tendo já entendido, o STJ, que há extensão do direito à indenização pelos dados causados à pessoa do morto, a todos aqueles relacionados no art. 12 do Código Civil, nos termos da súmula 642.
A direção apontada seja pela jurisprudência seja pelos projetos de lei em andamento demonstra, numa breve análise, dois pontos que merecem relevado destaque: (i) o primeiro deles acerca da natureza jurídica dos dados pessoais divulgados pela internet, reconhecidos como acervo sucessório, sendo equiparados à outros bens, compondo o espólio “digital” do falecido, salvo se houver manifestação contrária do titular em vida; e (ii) o segundo ponto: a possibilidade de se equiparar uma manifestação do autor da herança sobre o destino dos seus dados pessoais à um testamento, com resultado equivalente, a produzir efeitos sobre o destino de seus dados pós morte.
Compartilhando desse entendimento, as redes sociais já adotam políticas sucessórias prevendo a gestão da conta em caso de óbito do usuário. O Facebook, por exemplo, permite que os usuários expressem, em vida7, o tratamento a ser dado à suas contas pessoais, se desejam manter como um memorial ou se pretendem excluí-las de forma permanente, permitindo a administração da conta por um herdeiro que deve, entretanto, ser previamente designado pelo titular. O Instagram, por sua vez, prevê que qualquer usuário poderá informar8 sobre o óbito para que a conta seja transformada em memorial ou que um parente próximo informe o falecimento a fim de que a conta seja excluída.
Há casos, entretanto, que um parente ou um assessor, que já dispunham da senha anteriormente, mantém a conta ativa e atualizada, como aconteceu, por exemplo, no caso do perfil da cantora Marília Mendonça, falecida em novembro de 2021. Todavia, em geral, há o “congelamento” das informações ali contidas, sem atualizações, como aconteceu com o perfil do ator e humorista Paulo Gustavo, vítima fatal da Covid-19, em maio de 2021, e que ainda mantém seguidores na casa do milhão.
Fato interessante é que, a despeito da natureza íntima do perfil pessoal em rede social, a exigir senha de acesso, e conter dados de cunho eminentemente privado, há, nos dados divulgados na internet, um viés social que permite, em alguma medida, que a memória ou legado deixado pelo falecido – sobretudo se pessoa conhecida, pública, ou influencer (com muitos seguidores e referência na sua área de atuação) – seja preservado pelo direito e mantido sob administração dos sucessores, exceto, é claro, quando o próprio manifestou em vida intenção contrária, de forma expressa. É como se a persona digital tivesse um viés público, ao menos naquilo que foi compartilhado pelo próprio titular em vida, que, ao fazê-lo, teria criado uma lápide virtual de sua história, um retrospecto de seus melhores momentos, que ultrapassa sua finitude, para contar a sua própria história.
—————-
1 COELHO, Júlia Costa de Oliveira. Direito ao Esquecimento e seus mecanismos de tutela na internet, São Paulo: Editora Foco, 2020, p.1.
2 LEAL, Lívia Teixeira. Internet e Morte do Usuário: A necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil. Belo Horizonte: 2018. v. 16, p. 182.
3 Palestra proferida pelo professor Stefano Rodotá em 11 de mar. de 2003, tradução de Myriam de Fillipis. Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/151613/DLFE-4314.pdf/GlobalizacaoeoDireito.pdf. Acessado em 07 de jan. 2022, às 14:37
4 “Art. 6º. A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.” BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
5 Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.
6 BRANCO, Sérgio. Memória e Esquecimento na internet. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017, p. 99.
7 Facebook é uma mídia social e rede social virtual, sendo a plataforma de maior alcance global atualmente. Vide: . Acesso em 06 jan. 2022, às 15:20.
8 O Instagram é uma rede social online de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários, que permite aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma variedade de serviços de outras redes. Vide: https://help.instagram.com/264154560391256/?helpref=search&query=morte&search_session_id=aa55a46f241c3fa4728d037d928870c8&sr=1. Acesso em 07 de jan. 2022, às 15:23.