O Direito ao esquecimento

Autor Rafaella Marcolini

Um dos mais renomados pesquisadores na área da Memória nos últimos 50 James McGaugh, da Universidade de Califórnia, num livro publicado em 1971, apontou que “o aspecto mais notável da memória é o esquecimento” (Harlow et al., 1971).

Certamente, quando fez esta análise, o pesquisador sequer poderia intuir que cinquenta anos depois seríamos bombardeados com o excesso de estímulos a que estamos atualmente sujeitos, tampouco poderia supor a existência de uma memória que não morre jamais, a memória virtual, registrada na internet.

O direito ao esquecimento recentemente alcançou os tribunais sob dois aspectos distintos: a questão das biografias e a questão penal, que analisaremos neste artigo.

A controvérsia resume-se a duas perguntas-chave: ser lembrado é um direito? Ou, temos o direito de ser esquecidos?

Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica a tese do cancelamento dos dados criminais na folha de antecedentes, após a absolvição ou cumprimento das penas, com base no artigo 748 do Código de Processo Penal.

Para o STJ, o criminoso que paga a sua dívida com a sociedade tem, sim, o direito de ser esquecido, em prol da esperança da recuperação (“vínculo do futuro com o presente”) em contraponto à memória do erro (“conexão do presente com o passado”).

Para a construção dos pilares de um “direito ao esquecimento” no ordenamento brasileiro, o ministro Luís Felipe Salomão colheu precedentes norte-americanos e alemães, respectivamente, dos casos “Melvin vs. Reid” (1931) e “Lebach”, em voto histórico proferido no Recurso Especial nº 1334097/RJ.

O ministro entendeu que:

assim como é acolhido no direito estrangeiro, não tenho dúvida da aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com olhos centrados não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente no direito positivo infraconstitucional”.

A discussão acima veio à tona no Recurso Especial 1334097/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013 -O direito ao esquecimento na Chacina da Candelária.

No processo judicial em análise, um cidadão foi indiciado como partícipe da sequência de homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, na cidade do Rio de Janeiro, conhecidos como Chacina da Candelária, mas, ao final, submetido a Júri, foi absolvido por negativa de autoria.

Apesar disso, no ano de 2006, repórteres do programa Linha Direta-Justiça, da TV Globo, procuraram-no para entrevistá-lo sobre esses trágicos acontecimentos, reavivando o fato e expondo, o mencionado cidadão, a um novo julgamento social.

Essa situação levou-o a mover uma ação ordinária, com pedido de danos morais, contra a TV Globo.

Em primeiro grau, julgou-se improcedente o pedido do autor. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, decidiu-se pela condenação da empresa de comunicação onde o programa foi veiculado, decisão igualmente mantida na instância superior.

A despeito do direito ao esquecimento ser analisado caso a caso, ou seja, não ser absoluto, como, aliás, qualquer direito, algumas conclusões e trechos deste acórdão merecem ser compartilhados:

  • “Um dos danos colaterais da “modernidade líquida” tem sido a progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”, de modo que, na atual sociedade da hiperinformação, parecem evidentes os “riscos terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla abertura da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua gradual, mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 111-113). Diante dessas preocupantes constatações, o momento é de novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados.”
  • “Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos registros da condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos.”
  • “Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.”
  • “Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos – historicidade essa que deve ser analisada em concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.”

E você, o que pensa sobre isso?