O Desvio de Finalidade do Ato Administrativo

Por Rafaella Marcolini

“Pela ordem, Exa.” Essa expressão é frequentemente utilizada durante sessões do Legislativo ou audiências no Judiciário, sempre que há necessidade de apontar uma falha, dúvida ou equívoco, em relação ao regimento interno, ou alguma informação errônea referente ao processo que está sendo julgado. É, de forma ilustrativa, uma espécie de “Atenção, Exa”.

Essa expressão é muito apropriada à matéria que se visa analisar neste artigo, sobretudo considerando a atual conjuntura política do País, ainda que a análise seja meramente técnica e apartidária, levando em consideração, apenas, a letra fria da lei. Explica-se.

A Constituição Federal, em seu artigo 102, inciso I, expressamente determina:

“Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I- Processar e julgar, originariamente:
a)…
b) Nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República”. (continua)

A regra é clara: enquanto ocupantes daquela função, o Tribunal (foro) para que esses agentes públicos, em caso de ação penal,sejam processados e julgados é, pois, privilegiado (o STF já se manifestou no sentido de que as ações de improbidade administrativa não possuem regra de foro privilegiado). É o que o ordenamento jurídico qualifica como “prerrogativa de função”. O foro especial refere-se ao cargo ocupado, e não à pessoa que o ocupa.
O que poderia parecer, à primeira vista, uma violação ao princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei, na verdade, e a despeito do termo ser adjetivado como “privilegiado”, não seria privilégio, mas, sim garantia, que serve de proteçãoao cargo (e não à pessoa) de eventuais pressões que seus ocupantes pudessem vir a exercer sobre os órgãos jurisprudenciais inferiores. Órgãos de hierarquia superior, como o STF, em tese, teriam mais independência para julgar autoridades públicas do que juízes de instâncias inferiores.
A partir desse raciocínio, se, durante o exercício da função pública com foro privilegiado, houver, por exemplo, renuncia ao cargo, a ação penal que tramita no STF é remetida para a Justiça comum. O oposto também acontece, hipótese em que um indivíduo que já esteja respondendo a um processo penal seja chamado a ocupar um cargo em que, segundo a previsão Constitucional, haja prerrogativa de função. Nesse caso, há que se atentar para oobjetivo perseguido com essa nomeação, batizado, juridicamente, como“finalidade do ato administrativo”.Traduzindo: o que realmente se pretende com a prática daquele ato. A resposta, invariavelmente, deve ser: atender ao interesse público, que nada mais é do que o interesse de todos, o bem comum.
Todo e qualquer ato administrativo, assim entendidos todos aqueles praticados por um agente público, devem obedecer, estritamente, ao interesse público, sob pena de nulidade do ato. No momento em que o interesse de uma convocação ou nomeaçãoé, exclusivamente individual, há o que se convencionou nomear como “desvio de finalidade”. É, esse desvio, o atalho percorrido de forma simulada para atingir um interesse próprio, ou, nas palavras do Doutrinador Celso Antonio Bandeira de Melo “o uso de um ato para alcançar finalidade diversa da que lhe é própria”.
O ato administrativo praticado de forma simulada é, pois, considerado nulo, cabendo, ao Judiciário, assim reconhecê-lo, por meio de provocação via ações próprias, caso a própria Administração Pública não o faça (pelo Princípio jurídico da Autotutela, a Administração Pública pode rever seus próprios atos, e anulá-los, se ilegais) .