Autor Simone Kamenetz
O conceito de família é uma obra em progresso. Desde o início dos tempos, a concepção do que seja esse agrupamento de pessoas e sua extensão vem sofrendo transformações significativas, que tomaram maior velocidade a partir da 2ª metade do século XX.
Acompanhando as transmutações do entendimento do que seja a célula familiar, as suas denominações também foram evoluindo. Desde os tempos imemoriais, em que prevalecia a família patriarcal, na qual o pai detinha direitos absolutos sobre todos os que estavam sob sua autoridade – esposa, filhos, escravos –, evoluiu-se para o termo “função parental”, na época presente, que expurgou, assim, o conceito de “poder patriarcal” ou “poder familiar”, refletindo, consequentemente, o signo democrático que se tornou a marca desse agrupamento humano sui generis.
Independentemente de sua nomenclatura, a proteção da família sempre se manteve como prioridade dos seus membros, e essa proteção inclui a salvaguarda do patrimônio familiar, em especial a moradia.
Foi, assim, com fundamento na defesa e preservação da célula familiar que surgiu o instituto do bem de família. Sua origem remonta ao homestead norte-americano, que objetivou garantir ao trabalhador rural a proteção de suas terras, incluindo benfeitorias e móveis, contra penhoras por credores. Essa medida foi alicerçada no Homestead Exemption Act, de 1839, do Estado do Texas, que assegurou ao cidadão o direito de um tratamento fiscal favorável e garantias contra credores que buscassem penhora de seu imóvel. Esse modelo serviu de inspiração para a Constituição de 1845 do Estado do Texas, e todas as demais que se seguiram, que incluiu entre os direitos fundamentais do cidadão daquele Estado a garantia contra penhoras, desde que observadas algumas limitações estabelecidas, em especial quanto ao tamanho da propriedade e o tipo de dívida que venha a recair sobre o bem.
No caso do Brasil, o conceito do bem de família ingressou em nosso ordenamento jurídico através do Código Civil de 1916 que, em seu art. 70, estabeleceu ser permitido “aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas, salvo as que provierem de impostos relativos ao mesmo prédio”. Esse conceito foi incorporado pela Constituição de 1988, mas apenas quando da promulgação da Lei n° 8.009/1990 que essa prerrogativa ganhou seu nome – bem de família.
Como se observa de sua origem, o propósito do bem de família é o de proteger o grupo familiar contra a perda de sua moradia por dívidas contraídas pelo proprietário do imóvel. Exceto pelas dívidas referentes ao bem, tais como impostos, taxas e contribuições, crédito decorrente de financiamento para construção ou aquisição do imóvel e hipoteca, e por dívida derivada de fiança locatícia, dívida alimentar e aquisição do bem com produto de crime, o bem de família é impenhorável.
Considerando, assim, essa proteção conferida por lei ao imóvel em que reside o grupo familiar, a instituição do bem de família tornou-se uma poderosa ferramenta para o planejamento patrimonial.
Diferentemente do que se imagina, o planejamento patrimonial não está adstrito a pessoas mais abastadas, que detenha um acervo milionário de bens; a segurança do patrimônio é preocupação de todos que conseguem amealhar alguma posse que, em caso de perda, fará diferença relevante em sua vida. Nesse sentido, usualmente a moradia é o principal bem a ser protegido.
O planejamento patrimonial é, assim, o alinhamento de situações jurídicas com a organização dos bens detidos por uma pessoa, visando a, entre outras possibilidades, permitir uma administração mais eficiente a empresas, incluindo uma redução da carga tributária, conferir segurança à manutenção dos bens e, ainda, permitir um planejamento sucessório futuro de forma organizada, mais econômica e, principalmente, que possibilite uma transição desse patrimônio aos herdeiros de forma harmônica.
Nessa seara, o bem de família é um instrumento eficaz no que toca à proteção do imóvel da célula familiar. Importante, aqui, esclarecer que, consoante o que já abordamos anteriormente, o conceito de família caminhou bastante até chegar ao seu entendimento hodierno. Sobre esse assunto, a exposição de Rodrigo da Cunha Pereira em sua obra Direito das Famílias[1] é preciosa, e vale ser transcrita:
“Com a Carta Magna, ela [a família] deixou sua forma singular e passou a ser plural, estabelecendo-se ali apenas um rol exemplificativo de constituições de família. E nem poderia ser diferente, já que a ideia e o conceito de família está em constante mutação, adaptando-se às evoluções e costumes. Portanto, novas estruturas parentais e conjugais estão em curso, e muitas delas já são realidades absorvidas pela ordem jurídica, como as famílias mosaicos, famílias geradas por inseminação artificial, famílias simultâneas, poliafetivas, famílias homoafetivas, filhos com dois pais ou duas mães, parcerias de paternidade, enfim, as suas diversas representações sociais atuais e que estão longe do tradicional conceito de família, que era limitada à ideia de um pai, uma mãe, filhos, casamento civil e religioso.”
A concepção trazida por Rodrigo da Cunha Pereira vai ao encontro do entendimento já pacificado do Superior Tribunal de Justiça de que a finalidade da Lei n° 8.009/1990 foi proteger a entidade familiar no seu conceito mais amplo[2].
A Lei n° 8009/1990 veio conferir a proteção constitucional insculpida nos artigos 1º, III[3], 6°[4] e 226[5] da Constituição Federal. Sendo a moradia o elemento considerado como “mínimo existencial”, essa condição é considerada fundamental para a preservação da dignidade da pessoa humana, que sob a perspectiva constitucional, deve acarretar a preservação de um patrimônio mínimo do devedor, visando a sua subsistência. Esse tema é, aliás, a premissa básica da Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, desenvolvida pelo Ministro Luiz Edson Fachin: a garantia de um mínimo de patrimônio que permita ao cidadão o mínimo existencial a garantir-lhe uma vida digna.
A Lei 8009/1990 institui, de forma automática e sem necessidade de manifestação de vontade por parte do titular do patrimônio protegido, nem tampouco de qualquer registro perante cartórios imobiliários. De acordo com esse dispositivo legal, é considerado bem de família o imóvel residencial próprio no qual resida a família, estendendo-se esse benefício aos móveis e utensílios que guarneçam a moradia, desde que integralmente pagos. Os móveis que guarneçam um lar cujo imóvel seja alugado, e não próprio, também estão albergados pelo conceito de bem de família.
O normativo acima referenciado traz exceções à proteção que confere ao bem de família, elencadas no seu art. 3° e anteriormente já mencionado neste artigo.
A instituição do bem de família de forma voluntária, por sua vez, está regulado pelo Código Civil, a partir do art. 1.711, e se dá através de escritura pública ou por testamento, pelo qual um imóvel é destinado a esse propósito, desde que seu valor não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição. Pode ser integrado ao bem de família os móveis e utensílios que guarneçam o imóvel, bem como recursos financeiros necessários à manutenção do bem, desde que esse conjunto de ativos não ultrapasse o limite de 1/3 do patrimônio líquido quando de sua instituição. Essa exigência é considerada por muitos juristas como sem sentido, considerando que o único imóvel de uma família, por lei, já é considerado como bem de família, independentemente do percentual que seu valor represente considerando o patrimônio integral do favorecido.
A vantagem do bem de família voluntário sobre o bem de família legal reside na desnecessidade de comprovação, pelo instituidor, da afetação desse patrimônio ao único destino de ser a residência familiar, em caso de execução com pedido de penhora de bens. No caso do bem de família legal, o devedor deverá fazer prova de que o imóvel é, de fato, sua residência, bem como, caso seja proprietário de outro imóvel de menor valor, que não buscou fraudar o instituto ao designar o bem de maior valor como sendo o bem de família.
De outro lado, na hipótese de instituição do bem de família pela forma voluntária, duas são as desvantagens em relação ao bem de família legal: (i) a impenhorabilidade do bem de família voluntário só se opera em relação a dívidas futuras; caso existam dívidas anteriores, a proteção desse instituto não se estende a essas dívidas; e (ii) a alienação do bem de família voluntário dependerá do consentimento dos interessados e seus representantes legais e, no caso de haver menores ou incapazes no núcleo familiar, deverá ser, ainda, ouvido o Ministério Público, consoante o que dispõe o art. 1.717 do Código Civil.
A instituição do bem de família é uma ferramenta importante para a segurança dos que residem ou vivem de aluguel de imóvel próprio. Desta forma, é preciso analisar cada situação para se determinar as vantagens ou desvantagens de, em cada caso específico, instituir o bem de família de forma voluntária, ou apenas fazer uso da lei que regula essa matéria. Para as família que possuam mais de um imóvel e que atuem como empreendedores ou em atividades que possam colocar em risco o patrimônio amealhado, pode ser mais seguro optar pela instituição do bem de família voluntário, posto que uma vez registrada a respectiva escritura no cartório de registro de imóveis respectivos, torna pública essa afetação patrimonial, sem possibilidade de que haja discussão futura sobre a impenhorabilidade do bem para quitação de dívidas, exceto pelas listadas no art. 3° da Lei 8009/1990 e pelas dívidas anteriores à sua instituição.
Esta é uma matéria extensa, e não é objetivo deste artigo cobrir todas as peculiaridades desse instituto, mas apenas abordar os seus aspectos mais relevantes.
[1] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
[2] AgInt no REsp n. 1.889.399/PE, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 24/10/2022, DJe de 26/10/2022.
[3] Art. 1°. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana.
[4] Art. 6º . São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[5] Art. 226 . A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
Autor Rafaella Marcolini
Apesar das especificidades culturais, que adaptam e modificam rituais de luto e despedida, o culto aos mortos, e o modo como lidamos com a memória têm sido constantemente modificados diante do surgimento de novas tecnologias, instigando os operadores do Direito a lidar com desafios legais e morais no enfrentamento da questão.
O enfrentamento da morte e seus efeitos jurídicos é tema tão antigo quanto a humanidade. Apesar das especificidades culturais, que adaptam e modificam rituais de luto e despedida, o culto aos mortos, e o modo como lidamos com a memória têm sido constantemente modificados diante do surgimento de novas tecnologias, instigando os operadores do Direito a lidar com desafios legais e morais no enfrentamento da questão.
Sêneca, um dos grandes pensadores do Império Romano, filósofo estoico e grande advogado, refletindo sobre a finitude da vida, tendo, ele próprio, se suicidado, segundo os historiadores, por ordem direta do Imperador Nero, afirmou “não é da morte que temos medo, mas de pensar nela”. A ideia de que perecemos, e que, ao final, voltaremos ao pó de onde viemos, sempre foi motivo de assombro e de incredulidade, quase na mesma intensidade. O medo da morte repentina, da morte com sofrimento, da morte sem despedida, nos faz excluir, na rotina dos dias, a sua possibilidade, que é, todavia, tão presente como a própria vida. E, uma vez surpreendidos por ela, nos refugiamos em ritos de passagem, em vivências de luto, em respostas formuladas pelas religiões, que servem de anestesia no doloroso enfrentamento daquilo que não entendemos.
Mas não é só a saudade que aflige àqueles que ficam depois da passagem de um parente ou amigo querido. As providências burocráticas, os efeitos sucessórios, a divisão patrimonial, a solução prática de problemas, em um momento em que a fragilidade da existência se abate sobre nós, é mais um fator que nos impele a manter uma distância segura das margens de qualquer reflexão funesta.
Mas é preciso seguir. No mundo digital em que atualmente vivemos, grande parte desse acervo, ao contrário da nossa impermanência, nos ultrapassa, e se torna perene.
Passado o luto, há como manter memórias, preservar legados, inspirar o caminho e a história daqueles que ficam, e dentre as ferramentas possíveis, o Direito oferece respostas.
A professora Julia Costa de Oliveira Coelho, em sua tese de mestrado denominada “Direito ao Esquecimento e seus mecanismos de tutela na internet” afirma, com propriedade:
“É interessante notar que a liquidez que inunda o mundo acaba por tornar alguns valores, como a vida íntima, surpreendentemente fluidos e outros, como a liberdade de expressão, extremamente rígidos. Fato é que, no decorrer da história, a sociedade brasileira, assim como tantas outras, padeceu dos males paradoxais de insuficiências e excessos”1.
A autora faz referência a momentos pendulares da história brasileira: num extremo, o regime militar, opressivo, reacionário, que encolhia direitos à liberdade em contraponto ao avanço da publicização da vida privada, no extremo oposto, que veio com o advento das redes sociais, e a correlata expansão da voz dos indivíduos. Deparamo-nos com a atual versão da internet 2.0, em que qualquer cidadão pode produzir conteúdo, e há quem, inclusive, advogue pelo direito até mesmo a propagar fake news. Entre ambos, uma distância de pouco mais de meio século,
Adaptar, dentro de um sistema jurídico que caminha a reboque das transformações sociais, tamanhas mudanças – políticas, culturais, estruturais – e costurar um tecido legislativo que ampare e contemple tantas modificações em curto espaço de tempo, além de desafiador, promove inúmeros questionamentos e provocações. É preciso avaliar as exatas medidas da dosagem – no caldeirão de direitos em choque – entre progresso/modernidade e privacidade/dignidade do indivíduo.
Nessa evolução digital, o eixo da informação privada referente ao indivíduo deixa a área do sigilo, na qual sempre habitou, e passa para a área de circulação pública, exigindo, a partir daí, que se apresente algum controle legal, para inibir abusos ou excessos2. A discussão sobre memória post mortem surge nesse momento, em que se lançam sementes sobre como lidar com dados e informações de cunho íntimo lançados pela própria pessoa na internet, depois que ela morre. Qual seria a natureza jurídica desse Big Data, e como enquadrá-lo num regime sucessório? Esse é o desafio.
Num mundo onde convivem realidade virtual e realidade presencial ou real, a persona digital pode suplantar a persona real. Por meio da projeção de imagens e símbolos – foto, texto, voz, preferências musicais, perfil político e ideológico – é possível que se crie um avatar pessoal, repleto de filtros, em que traços pessoais que desaprovamos em nós mesmos são apagados ou atenuados, e passamos a ocupar o chamado “corpo eletrônico”, assim batizado por Stefano Rodotá. O festejado jurista define a origem do termo:
“Há uma difundida e persistente dificuldade social em metabolizar as inovações científicas e tecnológicas quando estas incidem sobretudo na maneira de nascer e morrer, na construção do corpo na era de sua reprodutibilidade biológica, na própria possibilidade de projetar a pessoa.”3
A possibilidade de coexistência da identidade real e a digital permite que seja criado um banco de dados permanente, que decorre da reunião de páginas digitais e perfis de rede social que servirão como memória digital do falecido no futuro.
Tributos pós morte com o legado da história digital do indivíduo já existem em plataformas digitais, mas ainda provocam controvérsia entre aqueles que entendem ser um ato impertinente e mórbido manter perfis de falecidos em contraponto a quem advoga a favor, por enxergar, neles, uma homenagem ou uma forma de cultuá-los.
A despeito de ser um direito personalíssimo e que integra o rol de direitos da personalidade – que, pelo artigo 6º do Código Civil4 – extingue-se com o óbito há uma parcela da doutrina que reconhece, em alguma medida, a tutela pós morte dos direitos à personalidade
Isso se explica, em parte, porque nesses novos tempos há uma conotação híbrida dessa memória, que agora coabita ambas as esferas, pública e privada. Naturalmente que o fato de se participar de qualquer bolha digital em vida, não significa uma autorização implícita e perene para que também sua memória seja eternizada por esse meio, tanto que a política das redes e o avançar legislativo na matéria apontam para a mesma direção: de autorização em vida para que seja definido o destino do perfil pós morte em rede social. Mas a mera faculdade de se poder escolher pela perenidade dos próprios dados cria um desafio para o operador do direito, timidamente enfrentado até o momento pelo legislativo, e que abre uma janela de possibilidades que até então não existia: a de se manter dados pessoais circulando ativamente após o seu titular deixar de existir.
Sinal dos tempos. A maior característica da sociedade atual – definida como líquida para Bauman5 – é justamente o deslocamento do conteúdo privado para acesso público, criando verdadeiras “plataformas de memória”.6
Seja como for, e perguntas deixadas à filosofia, o direito a ser quem se é, em todas às suas formas, é, certamente, um dos pilares mais robustos do direito à personalidade: contém outros direitos igualmente sagrados numa sociedade democrática: livre pensamento, manifestação, direito a associar-se, a exercer sua religião, a amar quem quiser. Finca raízes na própria dignidade humana, a mãe de todos os demais direitos.
Tais direitos, todavia, para a legislação civil, encerram-se com a morte do indivíduo, tendo sido assegurados com o seu nascimento, e exauridos ao longo da vida (que todos os exerçam em plenitude, portanto). Mas, diante de tamanhos desafios propostos nessa nova sociedade digital, há quem defenda que, apesar da morte, o corpo da pessoa, a sua imagem e a sua memória podem influir no curso social e perdurar no mundo das relações jurídicas.
Naturalmente que direitos associados à existência, como integridade física, locomoção, saúde, não perduram depois do falecimento do seu titular. Mas, outros, como dignidade, bom nome, honra, permanecem, ainda que o sujeito de direitos tenha falecido.
É uma ideia relativamente comum, quase inata à nossa humanidade, a de que o falecido deve ser preservado, caso seja alvo de algum comentário maldoso ou crítica injuriosa porque, acima de tudo, não pode mais se defender. Assim como é igualmente possível imaginar proteger a dignidade de quem, depois de morto, foi objeto de ofensas ou interpretações maldosas, que possam custar uma mácula em sua memória. Caso, por exemplo, do apresentador de televisão Augusto Liberato, que, após uma morte súbita em um acidente doméstico em 2019, teve sua vida íntima devassada, com a revelação de informações sobre sua intimidade sexual jamais compartilhadas pelo próprio enquanto vivo. É o outro lado da moeda, em que a memória do indivíduo revela o que o próprio titular jamais tornou público.
De um jeito ou de outro, boa parte da doutrina afirma que a pessoa morta não tem direitos à personalidade, e tampouco pode ser vítima de difamação, salvo de forma indireta, quando pessoas do círculo íntimo do falecido se ofendem com críticas ou ofensas direcionadas a ele.
A memória do falecido, por sua vez, é exceção, por ser um reflexo de sua dignidade, mantendo-se mesmo após seu último suspiro, sendo concedido, aos herdeiros, a legitimidade em protegê-la. Discussão que habita parte da doutrina é sobre a titularidade do direito violado, se direito próprio ou de terceiros, tendo já entendido, o STJ, que há extensão do direito à indenização pelos dados causados à pessoa do morto, a todos aqueles relacionados no art. 12 do Código Civil, nos termos da súmula 642.
A direção apontada seja pela jurisprudência seja pelos projetos de lei em andamento demonstra, numa breve análise, dois pontos que merecem relevado destaque: (i) o primeiro deles acerca da natureza jurídica dos dados pessoais divulgados pela internet, reconhecidos como acervo sucessório, sendo equiparados à outros bens, compondo o espólio “digital” do falecido, salvo se houver manifestação contrária do titular em vida; e (ii) o segundo ponto: a possibilidade de se equiparar uma manifestação do autor da herança sobre o destino dos seus dados pessoais à um testamento, com resultado equivalente, a produzir efeitos sobre o destino de seus dados pós morte.
Compartilhando desse entendimento, as redes sociais já adotam políticas sucessórias prevendo a gestão da conta em caso de óbito do usuário. O Facebook, por exemplo, permite que os usuários expressem, em vida7, o tratamento a ser dado à suas contas pessoais, se desejam manter como um memorial ou se pretendem excluí-las de forma permanente, permitindo a administração da conta por um herdeiro que deve, entretanto, ser previamente designado pelo titular. O Instagram, por sua vez, prevê que qualquer usuário poderá informar8 sobre o óbito para que a conta seja transformada em memorial ou que um parente próximo informe o falecimento a fim de que a conta seja excluída.
Há casos, entretanto, que um parente ou um assessor, que já dispunham da senha anteriormente, mantém a conta ativa e atualizada, como aconteceu, por exemplo, no caso do perfil da cantora Marília Mendonça, falecida em novembro de 2021. Todavia, em geral, há o “congelamento” das informações ali contidas, sem atualizações, como aconteceu com o perfil do ator e humorista Paulo Gustavo, vítima fatal da Covid-19, em maio de 2021, e que ainda mantém seguidores na casa do milhão.
Fato interessante é que, a despeito da natureza íntima do perfil pessoal em rede social, a exigir senha de acesso, e conter dados de cunho eminentemente privado, há, nos dados divulgados na internet, um viés social que permite, em alguma medida, que a memória ou legado deixado pelo falecido – sobretudo se pessoa conhecida, pública, ou influencer (com muitos seguidores e referência na sua área de atuação) – seja preservado pelo direito e mantido sob administração dos sucessores, exceto, é claro, quando o próprio manifestou em vida intenção contrária, de forma expressa. É como se a persona digital tivesse um viés público, ao menos naquilo que foi compartilhado pelo próprio titular em vida, que, ao fazê-lo, teria criado uma lápide virtual de sua história, um retrospecto de seus melhores momentos, que ultrapassa sua finitude, para contar a sua própria história.
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1 COELHO, Júlia Costa de Oliveira. Direito ao Esquecimento e seus mecanismos de tutela na internet, São Paulo: Editora Foco, 2020, p.1.
2 LEAL, Lívia Teixeira. Internet e Morte do Usuário: A necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil. Belo Horizonte: 2018. v. 16, p. 182.
3 Palestra proferida pelo professor Stefano Rodotá em 11 de mar. de 2003, tradução de Myriam de Fillipis. Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/151613/DLFE-4314.pdf/GlobalizacaoeoDireito.pdf. Acessado em 07 de jan. 2022, às 14:37
4 “Art. 6º. A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.” BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
5 Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.
6 BRANCO, Sérgio. Memória e Esquecimento na internet. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017, p. 99.
7 Facebook é uma mídia social e rede social virtual, sendo a plataforma de maior alcance global atualmente. Vide: . Acesso em 06 jan. 2022, às 15:20.
8 O Instagram é uma rede social online de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários, que permite aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma variedade de serviços de outras redes. Vide: https://help.instagram.com/264154560391256/?helpref=search&query=morte&search_session_id=aa55a46f241c3fa4728d037d928870c8&sr=1. Acesso em 07 de jan. 2022, às 15:23.
Notícia: a Subscrição do Brasil à Convenção de Haia
Decreto nº 8660 de 29 de janeiro de 2016
Em 29 de janeiro deste ano foi publicado o Decreto Presidencial nº 8660, para promulgação da adoção, pelo Brasil, dos termos da Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros, firmada em Haia em 5 de outubro de 1961.
Em linhas gerais, no sistema anterior, para que documentos públicos estrangeiros, ou documentos particulares notarizados— ou seja, que passaram por expediente similar ao do reconhecimento de firma no Brasil, em que um notário (sujeito com fé-pública) atesta a veracidade de uma assinatura no documento — surtissem seus efeitos jurídicos no Brasil, deveriam passar pela legalização consular — a consularização —, procedimento pelo qual a autoridade diplomática brasileira localizada no país em que foi emitido o documento, endossa tal notarização, atestando sua legitimidade.
A feitura desse procedimento de legalização consular era, portanto, exigida por diversos órgãos públicos e instituições particulares brasileiras, e deveria ser realizada sempre antes da tradução do documento, sendo necessário posterior registro em Cartório de Títulos e Documentos — registro que concede publicidade aos documentos particulares internos, e, em regra, é necessário para atestar a validade dos documentos estrangeiros.
A partir de 14 de agosto deste ano, oficialmente, o procedimento de legalização consular será dispensado, e substituído pela ‘apostila’ — ou, conforme as normas da convenção, em francês, ‘apostille’ — certificação que consolida em um certificado único todas as informações aptas a comprovar a validade de um documento público ou particular notarizado, em outro país signatário. É bom ressalvar que há vedação quanto à aposição da apostila para os documentos emitidos por agentes diplomáticos ou consulares, e para documentos administrativos diretamente relacionados às operações comerciais ou aduaneiras. O lapso temporal entre a publicação do Decreto (29/01/2016) e a data para início de seus efeitos externos (14/01/2016), existe por razão da possibilidade de outros países participantes da Convenção apresentarem, em até 6 (seis) meses, objeções à entrada do Brasil; assim, se algum país vier a manifestar discordância em face da adesão do Brasil aos termos da Convenção de Haia, seus efeitos se tornariam ineficazes, apenas, em relação a este país que tenha a formulado.
Embora com muito atraso, a promulgação do Decreto, e consequente adesão do Brasil à Convenção, facilitará muitos procedimentos públicos e particulares internos, reduzindo sensivelmente os custos efetivos de inúmeras operações societárias, comercias, ou particulares, e tornando-as, também, muito mais céleres. Vale lembrar que vigoram, atualmente, outros tratados bilaterais de dispensa de legalização, como, por exemplo, o existente com a Argentina e com a França, mas, considerando-se que são membros o total de 108 (cento e oito) países da Convenção de Haia — incluindo os grandes parceiros comerciais do Brasil, como a totalidade da União Europeia, e os Estados Unidos —, o Brasil, certamente, deu um passo em prol da desburocratização, saindo da posição retrógada antes ocupada.
A quem interessar, a integra do decreto segue no link do site do planalto: http://www.planalto.gov.br/…/_Ato201…/2016/Decreto/D8660.htm
“Pela ordem, Exa.” Essa expressão é frequentemente utilizada durante sessões do Legislativo ou audiências no Judiciário, sempre que há necessidade de apontar uma falha, dúvida ou equívoco, em relação ao regimento interno, ou alguma informação errônea referente ao processo que está sendo julgado. É, de forma ilustrativa, uma espécie de “Atenção, Exa”.
Essa expressão é muito apropriada à matéria que se visa analisar neste artigo, sobretudo considerando a atual conjuntura política do País, ainda que a análise seja meramente técnica e apartidária, levando em consideração, apenas, a letra fria da lei. Explica-se.
A Constituição Federal, em seu artigo 102, inciso I, expressamente determina:
“Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I- Processar e julgar, originariamente:
a)…
b) Nas infrações penais comuns, o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República”. (continua)
A regra é clara: enquanto ocupantes daquela função, o Tribunal (foro) para que esses agentes públicos, em caso de ação penal,sejam processados e julgados é, pois, privilegiado (o STF já se manifestou no sentido de que as ações de improbidade administrativa não possuem regra de foro privilegiado). É o que o ordenamento jurídico qualifica como “prerrogativa de função”. O foro especial refere-se ao cargo ocupado, e não à pessoa que o ocupa.
O que poderia parecer, à primeira vista, uma violação ao princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei, na verdade, e a despeito do termo ser adjetivado como “privilegiado”, não seria privilégio, mas, sim garantia, que serve de proteçãoao cargo (e não à pessoa) de eventuais pressões que seus ocupantes pudessem vir a exercer sobre os órgãos jurisprudenciais inferiores. Órgãos de hierarquia superior, como o STF, em tese, teriam mais independência para julgar autoridades públicas do que juízes de instâncias inferiores.
A partir desse raciocínio, se, durante o exercício da função pública com foro privilegiado, houver, por exemplo, renuncia ao cargo, a ação penal que tramita no STF é remetida para a Justiça comum. O oposto também acontece, hipótese em que um indivíduo que já esteja respondendo a um processo penal seja chamado a ocupar um cargo em que, segundo a previsão Constitucional, haja prerrogativa de função. Nesse caso, há que se atentar para oobjetivo perseguido com essa nomeação, batizado, juridicamente, como“finalidade do ato administrativo”.Traduzindo: o que realmente se pretende com a prática daquele ato. A resposta, invariavelmente, deve ser: atender ao interesse público, que nada mais é do que o interesse de todos, o bem comum.
Todo e qualquer ato administrativo, assim entendidos todos aqueles praticados por um agente público, devem obedecer, estritamente, ao interesse público, sob pena de nulidade do ato. No momento em que o interesse de uma convocação ou nomeaçãoé, exclusivamente individual, há o que se convencionou nomear como “desvio de finalidade”. É, esse desvio, o atalho percorrido de forma simulada para atingir um interesse próprio, ou, nas palavras do Doutrinador Celso Antonio Bandeira de Melo “o uso de um ato para alcançar finalidade diversa da que lhe é própria”.
O ato administrativo praticado de forma simulada é, pois, considerado nulo, cabendo, ao Judiciário, assim reconhecê-lo, por meio de provocação via ações próprias, caso a própria Administração Pública não o faça (pelo Princípio jurídico da Autotutela, a Administração Pública pode rever seus próprios atos, e anulá-los, se ilegais) .
Até há muito pouco tempo atrás considerado como providência cara e dispensável pela maioria dos empresários do país, o programa de compliance corporativo tomou significativa dimensão a partir do julgamento da Ação Penal 470 – vulgarmente conhecida como Mensalão –, adquirindo uma magnitude jamais vista depois do evento da Operação Lava Jato.
O Mensalão estabeleceu um marco na implementação de medidas de combate à corrupção. Entre essas medidas, foi aprovada a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), que visa a coibir as relações promíscuas entre empresas e órgãos públicos, penalizando criminalmente o corruptor e a empresa pelo oferecimento de vantagem a agente público em benefício próprio. Ou seja, uma grande inovação trazida pela Lei nº 12.846/2013 é a responsabilização das pessoas jurídicas pelos atos ilícitos praticados em seu interesse e benefíciopor seus dirigentes ou administradores. As penas aplicáveis à pessoa jurídica pela prática de atos considerados corruptos são muito severas, incluindo a extinção da empresa.
A responsabilização das empresas por crimes de corrupção pode ser novidade para os empresários brasileiros, mas não é uma invenção recente. Em decisão datada de 1860, a Corte de Apelação de Nova Iorque decidiu que não responsabilizar as companhias por danos as tornaria num dos “monstros mais perniciosos” (Bissell v. Mich. S.R.R. Co.). Em 1909, ao julgar o caso New York Central & River Railroad v. United States, a Suprema Corte americana reconheceu que as empresas poderiam ser responsabilizadas por crime cometido por qualquer empregado. O caso tornou-se um marco ao consagrar o entendimento de que nenhuma regulação seria efetiva se apenas os empregados e dirigentes pudessem ser penalizados pela prática de crimes de corrupção, uma vez que esses atos seriam praticados, afinal, em benefício da empresa para a qual os indivíduos são apenas instrumentos.
Os programas de compliance originaram-se, portanto, nos Estados Unidos, mais ou menos na virada do século XX, com o surgimento das agências reguladoras. Atualmente, com a multiplicação dessas agências, os compliances aplicáveis às empresas devem observar o cumprimento de um considerável volume de normas das mais variadas áreas do Direito, como ambiental, econômico e criminal, este último com foco na prevenção da prática de atos que resultem na tipificação dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.
Nesse sentido, o programa de compliance corporativo objetiva estabelecer mecanismos internos pelas companhias para identificar e prevenir práticas ilícitas por seus dirigentes e executivos que possam resultar em demandas administrativas e judiciais.O termo compliance, originário do verbo tocomply, significa cumprir, executar, estar em conformidade com leis, regulamentos, políticas e normas internas, de forma a assegurar a aplicação das melhores práticas de mercado e de Governança Corporativa.
A Lei nº 12.846, também chamada de Lei da Empresa Limpa e regulamentada pelo Decreto nº 8.420/2015, estabeleceu a responsabilidade objetiva de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública.Um dos favores legais estabelecidos pelo Decreto 8.420 é o de permitir a redução da multa imputada à empresa pela responsabilidade na prática de crimes de corrupção.
Os programas de compliance são regulados, também, por normas administrativas, como a Portaria CGU nº 909/2015, que dispõe sobre a avaliação dos programas de integridade de pessoas jurídicas, com um foco especial sobre a orientação de como aferir o desempenho da empresa no cumprimento do programa de compliance para fins da obtenção de créditos positivos na prática de conformidade à política de anticorrupção.
A hora é a de ajuste e adaptação. As empresas brasileiras devem voltar sua atenção para seus procedimentos internos, estabelecendo rotinas que as protejam contra uma cultura de procedimentos que, após o Mensalão e a Lava Jato, pode representar a sentença de morte da corporação. Para isso, deve começar pela implementação de um programa de conformidade, adequando os padrões de conduta de seus dirigentes e executivos àqueles exigidos por lei.