Os Direitos da Terceira Idade

Autor Ana Clara Leite Almeida

O aumento da expectativa de vida do brasileiro, assim como da população mundial em geral representa, dia após dia, um crescente desafio para as políticas públicas que precisam dar respostas eficazes à proteção dos direitos sociais e civis da pessoa na terceira idade.

Em 1993 verificamos notável avanço dos projetos com o lançamento da Política Nacional do Idoso (Lei 8.842 de 1993), e, dez anos após o seu lançamento, os idosos ganharam um novo postulado dos seus direitos.

Em trâmite na Câmara desde 2003, a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, popularmente conhecida como estatuto do idoso, foi sancionada pelo ex-presidente Lula, e traz normas que visam realizar o preceitos constitucionais que protegem a pessoa humana, elencando um rol de direitos que garantem a acessibilidade e integração dos idosos na sociedade, tais como:

  • atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população; (ii) descontos de pelo menos 50% (cinquenta por cento) nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer, bem como o acesso preferencial; (iii) prioridade na tramitação dos processos judiciais; (iv) gratuidade nos transportes públicos municipais; (v) prioridade no recebimento da restituição do Imposto de Renda; (Incluído pela Lei nº 11.765, de 2008); (v) vedação a acréscimos realizados pelas seguradoras de saúde levando em conta a cobrança diferenciada por idade; entre outros. (Para conhecer o estatuto do idoso acesse http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm).

Outra diploma legal, a Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social – LOAS, dando conseqüência art. 203, V, da Constituição Federal, assegura a assistência social à velhice e, como ponto alto regula a prestação continuada, que consiste na garantia de 1 um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família (art. 20).

A partir de janeiro de 1998, conforme a Lei Federal nº 9.720, de 1998, a idade mínima para receber o benefício de prestação continuada foi reduzida de 70 para 67 anos. Assim, o idoso que contar hoje 67 anos e que se enquadre nas exigências da lei pode ser contemplado pelo benefício de prestação continuada. O problema é que para receber o benefício de prestação continuada, a renda per capita da família não pode ser superior a ¼ (hum quarto) do salário mínimo.

Além destas previsões em vigor há 10 anos, uma recentíssima alteração concedeu novo direito aos idosos.

Em 2013 foi aprovada na Comissão dos Direitos Humanos no Senado Federal, e em seguida, sancionada, sem vetos, pela ora Presidente Dilma Rousseff, a Lei nº 12.896, de 18 de dezembro de 2013, que acrescentou os §§ 5º e 6º ao art. 15 do Estatuto.

Os acréscimos dispensam os idosos que estejam doentes de comparecer aos órgãos públicos para resolver assuntos pessoais, ou atender a eventuais intimações para comparecimento em órgãos públicos.

Deste modo, quando de interesse do poder público, o agente interessado promoverá o contato necessário com o idoso em sua residência. Entretanto, na hipótese do comparecimento ser de interesse do próprio idoso, este se fará representar por procurador legalmente constituído.

As normas de proteção ao idoso possuem caráter impositivo, assim, quando desrespeitadas, podem e devem ser denunciadas ao Ministério Público.

O PROCON (quando o descumprimento se relacionar com relações de consumo), e ao Núcleo Especializado da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o NEAPI (Núcleo Especial de Atendimento à Pessoa Idosa – Rua General Justo, n.º 335, Loja A, Centro, Rio de Janeiro) também podem ser procurados para reclamações, ou tutela do direito lesado.


O Direito ao esquecimento

Autor Rafaella Marcolini

Um dos mais renomados pesquisadores na área da Memória nos últimos 50 James McGaugh, da Universidade de Califórnia, num livro publicado em 1971, apontou que “o aspecto mais notável da memória é o esquecimento” (Harlow et al., 1971).

Certamente, quando fez esta análise, o pesquisador sequer poderia intuir que cinquenta anos depois seríamos bombardeados com o excesso de estímulos a que estamos atualmente sujeitos, tampouco poderia supor a existência de uma memória que não morre jamais, a memória virtual, registrada na internet.

O direito ao esquecimento recentemente alcançou os tribunais sob dois aspectos distintos: a questão das biografias e a questão penal, que analisaremos neste artigo.

A controvérsia resume-se a duas perguntas-chave: ser lembrado é um direito? Ou, temos o direito de ser esquecidos?

Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica a tese do cancelamento dos dados criminais na folha de antecedentes, após a absolvição ou cumprimento das penas, com base no artigo 748 do Código de Processo Penal.

Para o STJ, o criminoso que paga a sua dívida com a sociedade tem, sim, o direito de ser esquecido, em prol da esperança da recuperação (“vínculo do futuro com o presente”) em contraponto à memória do erro (“conexão do presente com o passado”).

Para a construção dos pilares de um “direito ao esquecimento” no ordenamento brasileiro, o ministro Luís Felipe Salomão colheu precedentes norte-americanos e alemães, respectivamente, dos casos “Melvin vs. Reid” (1931) e “Lebach”, em voto histórico proferido no Recurso Especial nº 1334097/RJ.

O ministro entendeu que:

assim como é acolhido no direito estrangeiro, não tenho dúvida da aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com olhos centrados não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente no direito positivo infraconstitucional”.

A discussão acima veio à tona no Recurso Especial 1334097/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013 -O direito ao esquecimento na Chacina da Candelária.

No processo judicial em análise, um cidadão foi indiciado como partícipe da sequência de homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, na cidade do Rio de Janeiro, conhecidos como Chacina da Candelária, mas, ao final, submetido a Júri, foi absolvido por negativa de autoria.

Apesar disso, no ano de 2006, repórteres do programa Linha Direta-Justiça, da TV Globo, procuraram-no para entrevistá-lo sobre esses trágicos acontecimentos, reavivando o fato e expondo, o mencionado cidadão, a um novo julgamento social.

Essa situação levou-o a mover uma ação ordinária, com pedido de danos morais, contra a TV Globo.

Em primeiro grau, julgou-se improcedente o pedido do autor. No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, decidiu-se pela condenação da empresa de comunicação onde o programa foi veiculado, decisão igualmente mantida na instância superior.

A despeito do direito ao esquecimento ser analisado caso a caso, ou seja, não ser absoluto, como, aliás, qualquer direito, algumas conclusões e trechos deste acórdão merecem ser compartilhados:

  • “Um dos danos colaterais da “modernidade líquida” tem sido a progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”, de modo que, na atual sociedade da hiperinformação, parecem evidentes os “riscos terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla abertura da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua gradual, mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 111-113). Diante dessas preocupantes constatações, o momento é de novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados.”
  • “Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos registros da condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos.”
  • “Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente –, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.”
  • “Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos – historicidade essa que deve ser analisada em concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.”

E você, o que pensa sobre isso?


Questões Controvertidas Acerca da Responsabilidade Civil em Ambiente Virtual

Autor Rafaella Marcolini – Publicado no Livro “Temas avançados de Direto”, Editora Lei Nova

RESUMO: Busca-se no presente estudo tecer ponderações e suscitar questionamentos sobre tema recente e controverso: os balizamentos da responsabilidade civil por atos cometidos virtualmente. Partindo da popularização da internet e da evolução das relações jurídicas construídas virtualmente, e passando pelo consumo eletrônico, que impulsiona o gigantismo do comércio virtual, chega-se ao fim da linha: as consequências dos atos perpetrados por milhares de consumidores internautas e pelos fornecedores desses serviços, bem como suas correlatas responsabilidades. A celeridade inédita da edificação deste novo paradigma trouxe inúmeros desafios a demandar respostas breves e eficientes do Direito, que ora se propõe a comentar.

1.Introdução

Poucos acontecimentos influenciaram tanto a humanidade nas últimas décadas como a internet. Hoje é difícil imaginar como realizar determinadas tarefas sem o auxílio da grande rede, sobretudo compra e venda de artigos como livros, CDs e, mais recentemente, até mesmo eletrodomésticos, roupas, perfumes e afins. Com a facilidade e rapidez em comparar preços e formas de pagamento, a compra virtual tem sido escolhida pela grande maioria dos consumidores, especialmente em datas festivas em que centros de consumo se tornam pouco atraentes diante da alta concentração de pessoas.

Os dados impressionam e refletem o gigantismo do comércio eletrônico: é uma fatia de mercado que já atinge 10 bilhões de reais/ano, e os números tendem a crescer ainda mais. Passada a fase inicial de descrédito e insegurança dos consumidores, que foram minimizadas com o acentuado investimento em segurança pelos fornecedores de serviços virtuais, impulsionou-se, ainda mais, o comércio eletrônico no país.

O aumento vertiginoso do consumo e as peculiaridades intrínsecas à internet resultaram no incremento de questões que desafiam os juristas, exigindo uma resposta tão rápida e eficiente como uma conexão de banda larga.

Inseridas neste cenário promissor, as relações de consumo travadas em meio virtual adquiriram um diferencial sobre as demais, encadeadas no mundo real, e que remonta a tempos longínquos em que negócios eram fechados com um aperto de mão e no fio do bigode: a confiança e a boa-fé dos contratantes. A confiança do consumidor em depositar seus dados pessoais, e a do fornecedor em saber que está lidando com o próprio consumidor, e não com um terceiro, que inapropriadamente se utilizou daqueles dados como se seus fossem. São esses dois fatores que, em síntese, servem de forma determinante para o êxito da operação jurídica realizada em ambiente virtual.

2. Os Contratos Eletrônicos

O contrato eletrônico se diferencia, pois, do comércio que conhecemos, apenas por ser realizado à distância e conduzido através de meios eletrônicos automáticos e impessoais, ou seja, somente quanto a sua forma e o modo de sua execução ou entrega, mantendo-se íntegro quanto aos demais requisitos. Centraliza-se justamente nestes dois aspectos – a realização do contrato e a tradição do bem – a problemática que circunda a questão.

Em razão de serem contratos por definição jurídica, as obrigações celebradas em ambiente virtual adquirem os mesmos pressupostos de validade que incidem sobre os contratos presenciais, previstos no artigo 104 do Código Civil, quais sejam, a capacidade das partes, a manifestação livre da vontade e a licitude e possibilidade do objeto.

No plano subjetivo, os requisitos essenciais para a sua validade exigem que sejam firmados por agentes capazes civilmente, bem como que as partes forneçam seu consentimento de forma adequada. Essa hipótese de validade do contrato é frequentemente arguida para afastar a eficácia dos contratos eletrônicos celebrados pelos incapazes civilmente, quando não amparados por seus pais ou responsáveis legais. Atrai-se, para a hipótese, a confluência principiológica citada acima e que permeia as relações jurídicas travadas neste meio, sendo o princípio da boa-fé objetiva um norteador para que seja possível atestar a veracidade dos dados prestados no ato da contratação virtual, já que o comércio eletrônico, por sua natureza, dificulta a conferência da identidade de cada um dos contratantes, em razão do volume das operações realizadas simultaneamente com milhares de pessoas.

Em uma provocação interessante sobre o tema, indaga se o menor, que teria afirmado durante a fase contratual que seria maior de idade, poderia, em momento posterior, requerer o desfazimento do negócio jurídico por nulidade, alegando sua condição de incapaz. A fim de esclarecer tal indagação, há que se distinguir os absolutamente incapazes dos relativamente incapazes, tal como o próprio ordenamento o faz, dosando proteção maior àquele que, menor de 16 anos, ainda não dispõe de maturidade e discernimento completamente formados.

Se relativamente incapaz, ou seja, se estiver, o menor, entre dezesseis e dezoito anos, não é possível que se utilize de sua malícia para se desobrigar, consoante previsão expressa do Código Civil em seu artigo 180, que textualmente dispõe: ‘O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”. Neste caso, o legislador previu que o menor, na iminência de atingir a maioridade, já a teria em parte, aumentando seu nível de discernimento na medida em que se aproxima em alcançá-la, ao contrário do absolutamente incapaz, hipótese do menor de dezesseis anos. Se age com malícia a ponto de convencer outrem, restaria superada a deficiência de maturidade que o legislador visa proteger. Em outras palavras, a malícia supre a idade (malitia supplet aetatem) para os relativamente incapazes.

Conclui-se que, para o legislador, a exteriorização da manifestação da vontade das partes é item essencial para a constituição do negócio jurídico. Neste particular, face à imaterialidade do contrato, o aceite não pode se dar de forma presumida ou implícita, o que configuraria uma violação aos direitos básicos do consumidor. É dever dos fornecedores desta categoria de serviços, criar ferramentas que possibilitem aferir o consentimento exarado pelo consumidor, inclusive para permitir o exercício do direito de arrependimento, que, nos contratos celebrados à distância, é de sete dias, nos termos do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor.

A prova do aceite dos termos do contrato eletrônico depende, portanto, do consentimento prévio e expresso do consumidor, que deve ser objeto de alguma ferramenta de aceitação apresentada ao longo do processo de contratação, que indique ou demonstre que o internauta aceitou e entendeu as regras da oferta anunciada, optando por adquirir aquele produto ou serviço.

O click box ou, em tradução livre, o “clique na caixa”, um quadrado no qual o comando do consumidor é exigido para prosseguir à fase seguinte do contrato, tem sido utilizado como prova do prévio conhecimento e aceite por parte do consumidor. Esta prova pode ser materialmente documentada por meio de uma impressão da página, mediante o acionamento da tecla de print screen ou, como tecnicamente recomendado, através de elaboração de ata notarial que ateste a autenticidade dos dados lançados naquela determinada página eletrônica, por meio da constatação formal feita por um notário, imbuído de fé pública.

Malgrado as dificuldades físicas de comprovação da existência do contrato eletrônico, as alternativas retro citadas aos poucos têm sido criadas, seja pelos próprios prestadores desta categoria de serviços, conforme os exemplos citados acima, seja pelos operadores do Direito, a fim de equalizar os entraves desta relação jurídica, fato de grande interesse para ambos contratantes.

Neste sentido, é imperioso que a prova do aceite do contrato eletrônico não seja implícita ou subentendida, posto que, nesta hipótese, poder-se-ia enquadrá-la na disposição legal de amostra grátis, nos termos do dispositivo legal 39, III, do Código de Defesa do Consumidor e, nesta condição, o contrato não o obrigaria.

3. O fenômeno do Chargeback

Outro fato de grande relevo que afeta, em especial, os prestadores de serviços em ambiente virtual, é a estratégia de internautas que usam a má-fé e a malícia como estratégia predatória, a fim de satisfazer seus ímpetos consumistas. Indivíduos que realizam pedidos através do uso de seus próprios cartões de crédito, e que, em seguida à finalização da compra e venda, cancelam as compras junto às administradoras, sob a alegação de que teriam sido feitas a sua revelia, por obra de terceiros. O modus operandi da realização do pagamento ou cancelamento efetuados em meio virtual têm facilitado a execução dessas fraudes. Isso porque o cancelamento da compra junto à administradora processa-se, normalmente, em um lapso temporal posterior à conclusão do processo de compra junto aos comerciantes virtuais, que, mesmo sem a confirmação de pagamento, liberam o produto ao destinatário final. Findo o prazo regular de faturamento daquela compra, o comerciante aguarda que a administradora de cartão de crédito repasse o valor creditado em seu favor da compra já cancelada, e a débito do consumidor que, a esta altura, já recebeu o produto ou já gozou do serviço. O cancelamento daquela compra e o estorno ao consumidor do valor debitado, conhecidos como chargeback, além de gerar um prejuízo material ao comerciante, poderá servir como fator de rescisão de seu contrato com a administradora, que rejeita a manutenção de vínculo contratual com comerciantes que tenham um histórico de elevado índice de ocorrências desta natureza.

Não bastasse o prejuízo sofrido pelo não recebimento pelas vendas efetuadas, o lojista ainda pode ser surpreendido pela situação de passar da posição de lesado para a de devedor da administradora. Este é um problema grave e crônico que tem se alastrado pela rede, e que teria algumas soluções passíveis de estudo. Uma delas seria a adoção de uma ferramenta de análise de risco, ou mesmo um facilitador de pagamento, que garanta as vendas aprovadas, existindo alguns exemplares já em operação pela internet.

O desafio maior dessas transações é, portanto, criar mecanismos de confirmação da identidade do consumidor/adquirente que sejam prévios à conclusão do negócio jurídico, e que condicionem a sua validade e eficácia, tal como cláusulas de condição suspensiva, nas quais o efeito da obrigação principal permanece em suspenso, aguardando o advento de fato futuro e incerto. Pendente a condição suspensiva, não se terá direito adquirido, mas, apenas, uma expectativa a esse direito. A eficácia do ato ficaria suspensa até que se realizasse o evento, que é a confirmação da identidade do consumidor. No momento em que o acontecimento previsto se verificasse, ter-se-ia, então, o aperfeiçoamento da relação jurídica.

Outra possibilidade viável de confirmação de identificação é a exigência de abertura de cadastro, com a inclusão de dados pessoais como identidade e CPF, que deveriam ser revistos obrigatoriamente pelo consumidor, através de acesso a um link de confirmação. Ainda que também esta alternativa seja suscetível de falhas ou fraudes, os riscos seriam consideravelmente minimizados e, ainda, colocariam a preocupação do lojista com segurança como requisito primeiro da realização do negócio jurídico, ou seja, seria uma prova reflexa da boa-fé objetiva, que, se já é compulsória em negócios travados no mundo real se faz indispensável quando realizados virtualmente.

Não são poucos os lojistas que já executam este modelo de confirmação em seu negócio, porquanto além de alcançarem uma posição de credibilidade perante o consumidor, ainda utilizam os dados obtidos em negociações com parceiros, já que um numeroso banco de dados é, hoje, um dos mais disputados tesouros no ambiente da internet, negócio de cifras astronômicas, que consiste no envio das malas diretas e de emails indesejados de propaganda, um mercado que demanda igualmente uma urgente regulação normativa realmente eficaz.

4. Teoria da Aparência x Teoria do Risco

A aplicação da teoria da aparência, utilizada mais como uma alternativa proposta pela doutrina e pouco aceita pela jurisprudência para situações de fraude na internet, é, ainda que minoritariamente, uma saída jurídica possível ao lojista que não disponha de elementos técnicos capazes de identificar o verdadeiro causador do dano e venha a ser responsabilizado pelo lesado, que, na qualidade de consumidor por equiparação, se torne vítima do uso ilícito de seu cartão de crédito. A justificativa consiste em alegar confiança naquele que se apresenta na qualidade de fulano ou sicrano. Contudo, diante das inúmeras possibilidades de confirmação de identidade que hoje já existem à disposição do empresário deste ramo de negócios, a arguição desta teoria como forma de defesa dificilmente se sustenta.

A jurisprudência sempre esteve inclinada a não reconhecer a teoria da aparência como excludente de responsabilidade dos prestadores de serviços em âmbito virtual, justamente por conta da crescente evolução e modernização dos sistemas de segurança, que permitem, atualmente, rastreamento de códigos de Internet Protocol (IP) e outras técnicas que, se não identificam a origem do acesso, possibilitam, ao menos, chegar muito próximo à procedência e identidade daquele usuário.

Assim, muito antes de se ampliar os instrumentos de segurança e proteção de dados na internet, a jurisprudência já aplicava a teoria do risco do empreendimento aos comerciantes virtuais, sob o argumento de que os fornecedores de bens e serviços atuantes no mercado têm o dever de responder pelos fatos e vícios inerentes a sua própria atividade, independentemente da comprovação de culpa. Se todos os provedores de serviços de internet têm o dever de utilizar tecnologias apropriadas aos fins a que se destinam, de acordo com a atividade que exercem, considerando-se o estágio de desenvolvimento tecnológico adequado ao momento da prestação do serviço e, se é um negócio lucrativo que lhes permite investir continuamente em tecnologia para aperfeiçoamento dos sistemas e maior blindagem de seus usuários, não podem basear-se em técnicas primárias e intuitivas de confiança para execução do seu negócio. Seria como usufruir do bônus sem pagar o ônus.

É, pois, parte integrante do serviço prestado pela internet a preservação de dados técnicos de conexões e acessos e os dados cadastrais dos usuários, viabilizando a identificação ou localização dos responsáveis por atos ilícitos, sujeitando-se o fornecedor a responder solidariamente pelo ato ilícito cometido por terceiro que não puder ser identificado ou localizado, em razão desta conduta omissiva.

Em outras palavras, o serviço prestado virtualmente difere daquele fornecido no ambiente real justamente pela obrigação do fornecedor de identificar os usuários através de suas conexões de acesso e de instalar e manter atualizados programas de proteção contra invasões dos servidores por terceiros, não sendo, no entanto, responsável na hipótese de ataques inevitáveis decorrentes da superação da tecnologia disponível no mercado, cabendo-lhe o ônus de demonstrar que seus sistemas de segurança eram suficientemente adequados à tecnologia existente na época em que ocorrida a invasão, exclusão de responsabilidade legal conhecida como “risco de desenvolvimento” e prevista no artigo 12, § 1º, III do CDC.[1] .

5. Privacidade na internet x “Publicização” da vida privada

Em contrapartida, a questão mais controvertida que gravita em torno do consumidor é a manipulação ou o uso não autorizado dos seus dados pessoais, mormente em sites de relacionamento, muitas das vezes com atos difamatórios danosos a sua imagem e honra.

Com a propagação de ofertas de serviços virtuais, conclamando a inclusão e cadastro de dados dos navegadores ávidos por consumo, modificou-se o cenário e o status da privacidade na internet, e hoje a regra predominante é a de induzir o compartilhamento da vida privada ou a sua publicização, alçando indivíduos comuns a protagonistas de suas próprias vidas, vinculando imagens, informações pessoais, e tudo o mais que for possível nas redes sociais.

A privacidade se deslocou de sua definição original, que era o direito em não ser importunado, para a legitimidade do monopólio do controle das informações que dizem respeito a si próprio. Esta constatação vai de encontro ao uso indiscriminado de dados entre empresas parceiras ou coligadas, muitas das quais preveem, inclusive, em seus contratos de co-branded[2], o compartilhamento dessas informações, como se suas fossem, numa rede invisível que abrange acordos entre servidores e provedores.

A fim de melhor conceituar a problemática da privacidade, faz-se necessário distinguir, inicialmente, a natureza das informações confiadas aos servidores, que podem ser relativas a situações existenciais, como opção sexual, contaminação por doenças infecciosas, por exemplo, ou a aspectos patrimoniais da atuação humana, como sigilo bancário, telefônico etc. Ainda que ambos os dados necessitem de igual proteção jurídica, a dimensão da publicidade dos dados sensíveis é, em regra, para a grande maioria das pessoas, mais devastadora do que a divulgação dos aspectos patrimoniais. Em especial no ambiente virtual, a disseminação de qualquer elemento atinente à privacidade do indivíduo possui projeção incalculável e de difícil reparação, em razão da peculiaridade do meio de divulgação e da dificuldade de seu rastreamento. Hoje em dia, pior do que palavras ao vento, são palavras na internet que não voltam nunca mais.

Aos poucos, tem se visto um crescimento vertiginoso de fraudes desta natureza alcançando os Tribunais pátrios. Indivíduos que utilizam informações pessoais de outrem e as deturpa ou delas se apropriam, criando perfis inverídicos ou fazendo-se passar por figuras públicas ou celebridades, atribuindo, a essas, atos ou fatos igualmente inverídicos.

O que se constata das decisões judiciais proferidas sobre o tema é que, cada vez mais, se cobra o “tributo da segurança máxima” no serviço de hospedar perfis em redes sociais. A fim de afastar sua responsabilidade na propagação do dano, o provedor de hospedagem deve, as suas expensas, utilizar sistemas de proteção idôneos para defender o usuário, além de alertá-lo sobre riscos e oferecer informações sobre como é possível evitar a ocorrência deste ilícito.Acaso os equipamentos técnicos utilizados, bem como os programas de computador do provedor de hospedagem, sejam obsoletos ou desatualizados, os serviços não oferecerão a segurança que deles se poderia esperar, o que, por si só, já fará incidir a responsabilidade daquele fornecedor. De igual forma, caso venha a ser omisso na prestação de informações consideradas essenciais e que poderiam acautelar o consumidor, ele também responderá civilmente.

Há quem advogue pela adoção compulsória de estratégias simples de segurança, como a inclusão do número do CPF do usuário ao criar seu perfil. Ainda assim, seria possível inserir um CPF falso ou de terceiros, mas exigiria mais técnica do que simplesmente forjar um email fraudulento, criado especialmente para a finalidade. Outra solução possível seria a exigência de certificação digital para o acesso, que já foi defendida em uma das versões do projeto de lei de cibercrimes, mas acabou sendo deixada de lado, devido a protestos provenientes da bancada dos provedores. Para alguns, o anonimato, ainda que parcial, na internet, é próprio da natureza da rede, e deve, na verdade, ser monitorado e, não, extinto, posto que sempre haverá meios de se rastrear e/ou fraudar mensagens ou usuários.

A dificuldade neste rastreamento, em razão do volume de operações realizadas simultaneamente e sem que haja um registro prévio, unificado e obrigatório, conduz a decisões judiciais antagônicas, ora reconhecendo os limites dos provedores e sua impossibilidade técnica de aferir tais informações, ora responsabilizando-os a partir da teoria do risco integral. Este posicionamento, um tanto quanto esquizofrênico, é resultado da ausência de conhecimento técnico a respeito da matéria, somada com a carência de regulação neste setor.

O volume de problemas e questões jurídicas que surgem a reboque da democratização da internet e, simultaneamente, a imposição de uma rede mais segura para que este crescimento não sofra um processo reverso, impõe a urgente aprovação do marco civil da internet, projeto de lei ambicioso que se propõe a regular a neutralidade da rede, a proteção e identificação dos usuários, a salvaguarda de dados pelos provedores, e a função social da rede, a responsabilidade civil dos usuários e provedores, dentre outras questões de relevo.

6. O Marco Civil da Internet

O Projeto de Lei 2126/2011 traz algumas respostas aos problemas mais graves de fraude na internet, muito embora sem esclarecer em minúcias os procedimentos a serem adotados. A Seção que trata de responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, por exemplo, assinala que o provedor de aplicações – leia-se provedor de conteúdo, que hospeda um serviço – somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo estipulado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. Neste aspecto, o Projeto de Lei não se coaduna integralmente com a jurisprudência, o que, em tempos de ativismo judicial[3] , pode vir a tornar a lei obsoleta, ou aplicada conforme interpretação do STJ, o que, ao final, lhe esvazia a força coercitiva original.

Os Tribunais inferiores nem sempre têm eximido a responsabilidade dos provedores de conteúdo com esta simplicidade. O uso do Código de Defesa do Consumidor como legislação aplicável a situações de fraude na internet até hoje tem imputado, ao fornecedor de serviços, responsabilidade na forma objetiva, com raríssimas possibilidades excludentes, muitas das vezes em hipóteses mais acadêmicas do que práticas.

A questão recebe um tratamento um pouco diverso quando alcança a Corte Superior. O STJ entende culposo o agir de quem não disponha de meios de prevenção de danos a terceiros, e, ato contínuo, que a criação e atualização de ferramentas de segurança são deveres do empresário que atua neste ramo, sob pena de responder pelos atos danosos. Retirar do ar a fonte do dano, neste raciocínio, não seria suficiente a compensar os prejuízos sofridos durante a sua exibição. Notadamente que, ainda sob a égide da legislação consumerista, podendo, o usuário ou a vítima do consumo a ele equiparada, optar entre acionar o terceiro fraudador, que, em regra é uma pessoa física, e o sítio de internet que vinculou a ofensa, não há dúvidas de quem irá escolher, assim como de que não se satisfará com a mera interrupção da vinculação do dano, sendo justa e legítima sua expectativa em ser indenizado pelos danos causados pela exibição do ato danoso.

Mais recentemente, porém, com a análise recorrente de processos judiciais sobre o mesmo tema, o posicionamento do STJ começou a acolher tendências mais moderadas, entendendo que o dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se aplicaria a responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor ou no artigo 927 do Código Civil. No entanto, alerta a Corte em seus julgados, é obrigação dos prestadores de serviços propiciarem meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e adotando providências que estejam ao seu alcance (leia-se, conforme a possibilidade técnica disponível) para a individualização dos usuários do site.[4]

Outrossim, o tratamento que foi dado à responsabilidade civil do provedor de aplicação rompe um paradigma já resolvido pela Justiça brasileira, conquanto determina que só haverá responsabilização por provedores de aplicação caso haja ordem judicial expressa sobre a retirada do material e este não a cumpra, em contrapartida ao entendimento assentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que estabelece o dever do provedor de aplicação em tomar providência de retirada de 24h até 72h, preventivamente, sob pena de ser responsável pelos danos decorrentes.

A análise do mencionado projeto leva a concluir que, dentre as inovações que mais causarão impacto, estão os limites da responsabilização do provedor de conteúdo, consideravelmente reduzidao se comparados à posição vigente da jurisprudência; a consolidação da neutralidade da rede, que impede privilégios de tráfego ou controle de conteúdo que circula na Internet, além do advento do direito ao esquecimento digital, quando há a solicitação por parte do usuário para a exclusão de todos os dados que o provedor de aplicação armazenar sobre si, o que também pode gerar insegurança jurídica caso não exposto de forma adequada.

Se aprovado sem sofrer alterações, o Marco Civil na internet já nascerá desatualizado, deixando que a jurisprudência esclareça as questões que deixou sem resposta.

7. Considerações finais

 

A inovação tecnológica, aliada à globalização das relações comerciais, criou uma nova modalidade de comércio celebrado à distância, através de meios eletrônicos. A reboque dessas mudanças, surgiram inúmeras questões atinentes à responsabilidade civil, que se colocaram perante a doutrina e a jurisprudência a exigir uma resposta do Direito, sobretudo no que se refere às fronteiras dos negócios celebrados virtualmente e à extensão da responsabilidade dos novos protagonistas deste cenário.

Na análise deste novo quadro, alguns antigos princípios voltam a ocupar lugar de destaque, tais como o princípio da boa fé objetiva e o princípio da confiança, materializado, este último, na teoria da aparência. Tais princípios permeiam todas as relações mantidas neste meio em face de sua especificidade, assegurando uma expectativa legítima da parte sob o ponto de vista da segurança e informação, desde a fase pré contratual até a pós contratual.

A complexidade e a amplitude destas relações jurídicas, por outro lado, exigem mais do que princípios norteadores, e a utilização da legislação protetiva do consumidor tem sido a argamassa, e a jurisprudência, o tijolo usados, atualmente, na construção dos balizamentos da responsabilidade civil em meio virtual, aplicando-se, integralmente, todos os seus institutos, destacando-se, dentre outros, a inversão do ônus da prova, a responsabilidade civil objetiva, o direito de arrependimento, e os princípios regentes deste Diploma, especialmente o direito a informação.

Neste esteio, o provedor de conteúdo que procede à venda de seus próprios produtos e serviços em seu website está enquadrado na categoria de fornecedor de serviços do artigo 3º do CDC, podendo vir a ser equiparado ao comerciante, na forma do art. 13 do mesmo Diploma Legal.

As excludentes legais previstas na legislação protetiva do consumidor, em especial o risco de desenvolvimento, podem ser igualmente admitidos em defesa dos provedores de conteúdo, sobretudo no que toca aos produtos e serviços que garantam a segurança das relações negociais realizadas por meio da internet, considerando-se a rápida mutação e evolução das tecnologias, desde que sua periculosidade se revele de verificação objetivamente impossível.

Os limites da responsabilidade do provedor de conteúdo, por sua vez, balizam-se pela sua ingerência e possibilidade de intervenção no conteúdo incluído pelos seus usuários e, ainda, por manter sistemas atualizados e eficientes de segurança dos dados que lhe foram confiados, podendo ter sua responsabilidade reduzida ou mesmo excluída em caso de acionamento judicial, se restar comprovado que agiu de acordo com essas orientações.

O Projeto de Lei 2126/2011, mais conhecido como Marco Civil da Internet, será um reforço à legislação em vigor, e promete modificar o atual estado de insegurança jurídica sobre o tema, com a definição de uma série de direitos e obrigações de cada um dos componentes do ecossistema digital, reforçando direitos e garantias já estabelecidos pela Constituição Federal, dentre eles, o direito dos usuários à liberdade de expressão, determinações a respeito da guarda de registros de conexão, e proteção de dados pessoais, responsabilidade sobre os conteúdos publicados e a consolidação da neutralidade da rede.

Caberá ao PL enfrentar os principais problemas referentes à tutela dos direitos no âmbito da internet que se relacionam a (i) identificação e localização do usuário responsável pelo ato ilícito; (ii) remoção ou o bloqueio de acesso a conteúdo lesivo; (iii) dimensão do dano moral causado pela vinculação do ato reputado como danoso; (iv) o ônus da prova nas questões técnicas relacionadas ao funcionamento da rede; (v) os limites do sistema jurídico e da jurisdição aplicável.

Embora seja da ciência jurídica o aprofundamento de discussões acerca de questões sociais que deságuam na formação das leis, nas relações jurídicas construídas virtualmente este debate é ainda mais profícuo, diante da multiplicação de hipóteses que nascem do encadeamento de possibilidades que a rede oferece.

Ainda que timidamente, as iniciativas legislativas e o entendimento da jurisprudência vão, pouco a pouco, desenhando uma resposta do Direito às questões inovadoras trazidas com o surgimento e a popularização da internet no país.

Referências Bibliográficas

Berenguer, Alexandre Vianna. Os contratos eletrônicos como relação de consumo – Autor: Alexandre Vianna Berenguer. Clubjus, Brasília- DF: 18 de junho de 2009. Disponível em http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver = 2.24272. Acesso em 12 fev.2013;

Leonardi, Marcel. Responsabilidade civil dos provedores de serviços de internet. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005;

Lorenzetti, Ricardo L. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004;

Marques, Cláudia Lima. Confiança no Comércio Eletrônico e a Proteção do Consumidor – Um Estudo dos Negócios Jurídicos de Consumo no Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004;

Martins, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet, São Paulo: RT, 2008;

Peck, Patrícia. Impactos do Marco Civil na Internet – Autor: Patrícia Peck, São Paulo – SP: 15 de fevereiro de 2013. Disponível em: http://idgnow.uol.com.br/blog/digitalis/2013/02/15/impactos-do-marco-civil-da-internet Acesso em 28 fev.2013.

[1] Antônio Herman Vasconcellos e Benjamin, conceitua risco de desenvolvimento como: “aquele risco que não puder ser cientificamente conhecido ao momento do lançamento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente após um certo período de uso do produto”. (BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Comentário ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991.)

[2] Contratos de parceria.

[3] Ativismo Judicial consiste em uma postura proativa do Poder Judiciário, que interfere nos demais Poderes, reflexo de uma sociedade em que há uma judicialização de conflitos, onde a palavra final será sempre aquela que vier dos Tribunais.

[4](trecho do voto do Ministro relator Sidnei Beneti):

“No caso em tela, o Acórdão recorrido asseverou que ‘ A recorrida se torna solidariamente responsável pelos prejuízos de ordem moral causados ao recorrente na medida em que não garante ao usuário a segurança necessária, permitindo a vinculação de conteúdo extremamente ofensivo. Ao deixar de fornecer a identificação do usuário ofensor, a empresa está compactuando com sua atitude, restando configurado o dever de indenizar.’

Todavia, consoante consta das razões de decidir da sentença, enquanto há inequívoco interesse do autor em descobrir o autor da ofensa, da parte da Ré, há a obrigação de cessar a ofensa. Nos seus termos (e-STJ fls. 263):Quanto ao fornecimento do endereço dos participantes das relações jurídicas entre as partes, observo que a ré não tem a obrigação de informá-los, desde que cessada a lesão. Há inequívoco interesse do autor em descobrir o autor da ofensa; da ré, entretanto, há a obrigação de fazer cessar a ofensa…

Nesse sentido, o julgamento do Resp 1.175.675/RS, Quarta Turma, publicado no DJe 20/09/2011, Rel. Min. Luís Felipe Salomão: Nesse ponto, ressalto, uma vez mais, que não se afirma que há dano moral imputável ao provedor de internet (administrador de rede social), já no momento em que determinada mensagem é postada na rede. Nesse momento há o dever de o provedor retirar tal mensagem do seu ambiente virtual, mas sua responsabilização civil vai depender de sua conduta, se omissiva ou não, levando-se em conta a proporção entre sua culpa e o dano experimentado por terceiros (art. 944, parágrafo único, do CPC)”

Recurso Especial nº 1.306.066- MT (2011/0127121-0), Rel. Min. Sidnei Beneti


A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada Eireli Interpretações Questionamentos Limitações e Restrições

Autor Simone Kamenetz – Publicado no Livro “Temas avançados de Direto”, Editora Lei Nova, 2014

Resumo: A impossibilidade de constituição de uma pessoa jurídica unipessoal (exceto pela subsidiária integral) criou, no País, uma realidade mercantil paralela, na qual duas pessoas se reúnem para constituir uma sociedade de responsabilidade limitada, sendo uma dessas pessoas o que se poderia chamar de “sócio fictício”, já que sua participação no empreendimento presta-se, tão somente, para atender à exigência da pluralidade de sócios, exigida por lei. Essa realidade paralela cria situações que tanto poder levar o “sócio fictício” a ter prejuízo de diferentes natureza, como a criar limitações e constrangimentos ao “sócio real”. De outro lado, o empresário que deseje alçar voo solo, sem render-se ao artifício comum de eleger um “sócio laranja”, não conta com o benefício da responsabilidade limitada, colocando seu patrimônio pessoal em risco para o desenvolvimento da atividade empresarial. Após diversas tentativas de criar um tipo societário que permitisse ao empresário explorar uma atividade econômica, de forma individual, sem expor os bens amealhados com esforço, foi transformado em lei, em 11/07/2011, o Projeto de Lei n° 4.605, de 04/02/2009, de autoria do Deputado Marcos Monte (DEM/MG). A Lei n° 12.441, publicada no D.O.U. de 12/7/2011, criou a figura da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, tipo societário já existente em diversos países, que permite ao empresário desenvolver sua atividade comercial com a limitação de sua responsabilidade pessoal. Apesar do avanço que essa lei trouxe, sua redação final deixou dúvidas, e algumas restrições impostas por esse novo dispositivo legal desvirtuaram o objetivo principal de sua criação.

Sumário: Considerações Iniciais; 1. Uma breve história da iniciativa privada; 2. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI; 3. Os questionamentos relativos à Lei n° 12.441/2011; 3.1 A extensão da responsabilidade; 3.2 A constituição da EIRELI por pessoa jurídica; 3.3 O capital mínimo; 4. Conclusão; Referências Bibliográficas.

Considerações Iniciais

A Lei nº 12.441, de 11/7/2011, publicada no D.O.U. de 12/7/2011, alterou o Código Civil brasileiro, incluindo um novo Título ao Livro II (Direito de Empresa), pelo qual ficou criada a empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI.
Até o evento da criação da EIRELI, uma sociedade simples ou empresária só poderia ser constituída com um mínimo de dois sócios e, no caso de faltar a pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de 180 dias, a sociedade deveria ser, obrigatoriamente, dissolvida .
A pessoa que desejasse empreender isoladamente, ou seja, sem um sócio obrigatório, deveria registrar-se perante a Junta Comercial como empresário individual. Essa modalidade de empreendedorismo oferece algumas vantagens, como a possibilidade de obter um registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (permitindo, assim, a abertura de contas bancárias e a emissão de notas fiscais) e seu enquadramento no Simples Nacional.
Como principal desvantagem desse tipo societário, no entanto, está o fato de que o patrimônio do empresário individual confunde-se com o da empresa, ou seja, a responsabilidade do empresário é ilimitada. Isso significa dizer que as dívidas contraídas pela empresa podem alcançar o patrimônio pessoal do empresário individual.
Até o advento da Lei n° 12.441/2011, aquele que quisesse constituir uma sociedade, mas não desejasse a participação de um sócio, recorria ao estratagema de outorgar uma participação mínima a um segundo sócio que, no mais das vezes, passava a ser detentor de uma única quota do capital social da sociedade. Esse artifício, comumente, cria situações inconvenientes para o sócio minoritário, que tem seu nome vinculado a um empreendimento do qual não detém qualquer ingerência, controle e, muitas vezes, conhecimento de qualquer fato, ato ou omissão relativos à administração da sociedade. Com seu nome e CPF atrelados à sociedade, não raro repercussões pessoais, em razão de processos trabalhistas e fiscais, criam prejuízos graves ao sócio minoritário, que nem acesso tem a documentos e informações com os quais instruir sua defesa.
Desta forma, a Lei n° 12.441/2011 nada mais representa do que uma adequação à realidade empresarial já vigente há muitos anos no País, abolindo, assim, a simulação no quadro societário, à qual os empreendedores eram obrigados a aderir, em razão da exigência legal de pluralidade de sócios.
Feitas as devidas loas à iniciativa do legislador, há que se fazer considerações sobre as restrições e limitações impostas por esse diploma legal, bem como sobre as interpretações que vêm sendo adotadas por órgãos públicos, desalinhadas com os propósitos que, teoricamente, nortearam a elaboração desse preceito legal.

1. Uma breve história da iniciativa privada

A evolução do capitalismo e, consequentemente, dos conceitos de obrigação, vem de longos e, muitas vezes, tenebrosos anos, remontando ao Código de Hamurabi (ou Hammurabi), que teve grande e preponderante influência sobre os Códigos Hebraicos e também sobre a própria Bíblia, e ao Código de Manu (Livro Oitavo), na Índia.
Entre os preceitos estabelecidos pelo Código de Hamurabi, encontra-se a Lei de Talião, considerada uma das mais antigas leis existentes. A lex talionis, conhecida pela máxima “olho por olho, dente por dente”, regeu uma sociedade que ainda não tinha um Estado organizado, no qual a composição privada não permitia que o patrimônio alheio fosse atingido (Pagano, 1998). A Lei de Talião encerrava a idéia de correspondência de correlação entre o mal causado a alguém e o castigo imposto a quem o causou.
O Código de Manu é considerado como a legislação mais antiga da Índia, e apresenta historicamente uma primeira organização geral da sociedade. Em seu Livro Oitavo, artigo 209, apresenta a semente da organização societária, determinando que “Quando vários homens se reúnem para cooperar, cada um por seu trabalho, em uma mesma empresa, tal é a maneira porque deve ser feita a distribuição das partes”.
Se, pela Lei de Talião, o devedor respondia pelas dívidas com sua liberdade ou com sua própria vida, com o advento da Lex Poetelia Papiria, os ônus que recaíam sobre o devedor passaram a ser transferidos ao seu patrimônio.
A Lex Poetelia Papiria permitiu, assim, precificar as perdas, e alcançar o devido ressarcimento através do patrimônio do devedor ou do causador do dano, ao mesmo tempo em que, ao se coibir a punição corporal do devedor, ficaram fincadas as bases de um sistema social que reconhecia os direitos humanos e, com isso – e para isso – estabelecia a necessidade de mecanismos para a correta distribuição de justiça.
O capitalismo começou, então, a florescer, tornando-se o lucro o objetivo a ser alcançado. A partir da Idade Média, a noção da separação entre o patrimônio da sociedade e o dos sócios começou a ficar definida, e o exercício de atividades comerciais, sob a forma de sociedade em nome coletivo e sociedade em comandita simples, começou a se tornar comum (Borba, 1999).
A figura do empresário surge no início do século XIX, através da ampliação, pelo economista francês Jean-Baptiste Say, das noções econômicas sustentadas por Adam Smith, qualificando o empresário como “o que exerce a mais notável influência na distribuição da riqueza” (Requião, 2005).
O Código de Comércio Napoleônico (1807) objetivou o direito comercial, que passou a ser baseado na prática de atos de comércio regulados por lei, deixando de ser aplicado somente aos comerciantes matriculados nas corporações. De acordo com a teoria francesa dos atos de comércio, a matéria comercial, antes fundamentada na figura do comerciante da Idade Média, passou a ser definida pela prática dos atos de comércio enumerados na lei. Assim, para se qualificar como comerciante e submeter-se ao direito comercial, não era mais requisito essencial à pessoa que se dedicava à exploração de uma atividade econômica pertencer a uma corporação, bastando a prática habitual de atos de comércio (Taddei, 2002).
O Código Civil italiano de 1942 formalizou a teoria jurídica da empresa, que se caracterizava por não dividir as atividades econômicas entre os regimes comercial e civil, como fazia a teoria francesa, acarretando, com isso, uma unificação legislativa do direito privado na Itália (Taddei, 2002).
A teoria da empresa, elaborada pelos italianos, tornou a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços o núcleo do direito comercial, no lugar da prática de atos de comércio. Com isso, a figura do empresário – aquele que reúne capital, trabalho, matéria-prima e tecnologia para a produção e circulação de riquezas – foi alçada a um grau de importância superior ao do gênero da atividade econômica desenvolvida.
A evolução histórica do direito comercial, portanto, pode ser dividida em três períodos: o período subjetivo corporativista, que tinha como núcleo do direito comercial a figura do comerciante matriculado na corporação (Século XII ao Século XVIII); o período de vigência do Código de Comércio Napoleônico de 1807, compreendido entre o Século XIII e o Século XX, em cujo núcleo estavam os atos de comércio; e, finalmente, o período que se iniciou com a partir do Século XX com o Código Civil italiano de 1942, que tem como núcleo a empresa (Taddei, 2002), e no qual nasceu o direito empresarial.
A partir do estabelecimento da figura do empresário, houve o reconhecimento de sua importância como principal fonte de crescimento para muitas economias, sendo, inclusive, apontado por autores como Say, Marshall, Shumpeter, Cantillon e outros mais como o “quarto fator de produção” (Dinis; Ussman, 2006).
Dada a importância do empresário para a economia, e considerando as vantagens agregadas ao desenvolvimento da atividade empresarial pela possibilidade da limitação da responsabilidade pessoal do empreendedor, entre outras, é que se torna forçoso reconhecer a notabilidade da iniciativa do legislador em criar a figura da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI. Todavia, em que pese esse reconhecimento, é imperativo admitir a existência de lacunas na Lei n° 12.441/2011, que levaram a interpretações consideradas equivocadas, e que vêm criando embaraços para diversos empreendedores, bem como de restrições e limitações que não estão alinhadas ao caráter hodierno e progressivo dessa lei que representa um grande avanço nas relações empresariais.

2. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI

Segundo estudo feito pelo SEBRAE, divulgado em outubro de 2011, no Brasil são criados, anualmente, mais de 1,2 milhão de novos empreendimentos formais. Desse total, mais de 99% são micro e pequenas empresas e Empreendedores Individuais (EI).
Com relação aos investimentos estrangeiros diretos (IED) no país, dados mais recentes divulgados pelo Banco Central (BC) informam que foram investidos no Brasil um total de US$ 59,893 bilhões de janeiro a novembro de 2012. O resultado é o segundo melhor para o período, só perdendo para 2011, quando as entradas tinham somado US$ 60,017 bilhões. Para os especialistas da área, os investimentos das empresas estrangeiras têm superado as expectativas mais otimistas.
As informações acima apresentadas visam a reiterar a importância da criação da empresa individual de responsabilidade limitada. Até o advento de sua existência, a constituição de uma sociedade de responsabilidade limitada, que permitisse o desenvolvimento de atividades produtivas no país, com a limitação da responsabilidade do empresário ao valor do capital da empresa, apenas era possível aos empreendedores que se associassem entre si, seja de direito e de fato ou, como soía acontecer, de forma fictícia. Tanto pequenos empreendedores, quanto pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, que pretendessem investir no país, precisavam, obrigatoriamente, de um segundo sócio para seu empreendimento, o que, especialmente para os estrangeiros, representava um risco adicional, por precisar lançar mão do artifício de incluir, em seu quadro social, alguém a quem, na grande maioria das vezes, o investidor sequer conhece.
A discussão sobre a criação da empresa individual de responsabilidade limitada remonta aos anos 1980, dentro do âmbito do Programa Nacional de Desburocratização, comandado pelo então ministro Hélio Beltrão. Nos anos 1990, o tema voltou aos debates, em razão do Programa Federal de Desregulamentação. Finalmente, quando da elaboração do antigo anteprojeto da nova lei das sociedades limitadas, foi proposta, também, a criação da figura da empresa individual de responsabilidade limitada, mas a ideia foi abandonada em virtude da tramitação do novo Código Civil (Santos, 2011).
Outros países já adotaram, há décadas, esse tipo societário, tais como a Dinamarca, Portugal, Itália, Bélgica, Alemanha, Espanha, Portugal e, na América do Sul, o Chile, obtendo excelentes resultados com essa experiência, vez que a empresa individual de responsabilidade limitada oferece, entre outras vantagens, a facilidade e o baixo custo para sua constituição, em razão de sua simplicidade.
O descompasso entre a realidade mercantil e a legislação gera situações em que o empresário, seja a pessoa física ou a jurídica, se vê obrigado a lançar mão de ardis para não comprometer seu patrimônio pessoal, em razão das obrigações contraídas para desenvolvimento da atividade empresarial. Criou-se uma cultura de hipocrisia das sociedades contratuais (Mamede, 2007). Esse atraso legislativo, pode-se também afirmar, gera uma violação a um dos direitos fundamentais estabelecidos em nossa Constituição Federal, no inciso XX do art. 5º, que prescreve que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”. Ora, se para resguardar seu patrimônio, evitando que ele venha a ser alcançado em razão das obrigações contraídas pela empresa, o empresário precisa constituir uma sociedade que limite sua responsabilidade, e para tanto, é preciso que essa sociedade tenha, no mínimo, dois participantes, há, sim, um constrangimento imposto à pessoa para que se associe e permaneça associada a outrem.
No Brasil, a empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI foi criada através da Lei n° 12.441, de 11 de julho de 2011 que, por meio de seu art. 1°, acrescentou o art. 980-A ao Livro II da Parte Especial e alterou o parágrafo único do art. 1.033, todos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), na forma abaixo:

TÍTULO I-A
DA EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA
Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.
§ 1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão “EIRELI” após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada.
§ 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.
§ 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração.
§ 4º (VETADO).
§ 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional.
§ 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
……………………………………………………………………………………………
“Art. 1.033. ……………………………………………………………………
…………………………………………………………………………………………….
Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV caso o sócio remanescente, inclusive na hipótese de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, requeira, no Registro Público de Empresas Mercantis, a transformação do registro da sociedade para empresário individual ou para empresa individual de responsabilidade limitada, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115 deste Código”.

Apesar de ser uma pessoa jurídica, a EIRELI não é uma sociedade empresária, mas sim uma forma diferenciada de constituição de empresário individual. Consoante a análise de Frederico Garcia Pinheiro, “trata-se de uma nova categoria de pessoa jurídica de direito privado, que também se destina ao exercício da empresa”.

3. Os questionamentos relativos à Lei n° 12.441/2011

3.1 A extensão da responsabilidade

Mesmo antes de sua promulgação, em 11 de julho de 2011, a Lei n° 12.441 já vinha suscitando dúvidas e questionamentos em relação a sua aplicabilidade, extensão e limitação de responsabilidade.
O Projeto de Lei n° 4.605/2009, de autoria do Deputado Federal Marcos Montes, posteriormente transformado na Lei n° 12.441/2011, previa a inclusão no Código Civil do art. 980-A, §4°, com a seguinte redação:

Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente.

Esse parágrafo foi vetado pela Subchefia para Assuntos Jurídicos do Gabinete Civil da Presidência da República, em razão da expressão “em qualquer situação”, o que, segundo o entendimento exposto no referido veto, poderia “gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil”.

3.2 A constituição da EIRELI por pessoa jurídica

O mesmo PL nº 4.605/2009 estabelecia, ainda, a obrigatoriedade de o titular da EIRELI ser pessoa natural, ou seja, de acordo com a redação original desse projeto, apenas a pessoa física poderia constituir esse tipo societário. A redação do artigo, antes de sofrer alteração, era a seguinte: “Art. 985-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é o titular da totalidade do capital social e que somente poderá figurar numa única empresa dessa modalidade”.
Todavia, o texto original do artigo acima transcrito foi alterado, e quando da promulgação da Lei n° 12.441, o dispositivo legal foi inserido no Código Civil com a seguinte redação: “Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”.
A alteração acima apontada excluiu a limitação da constituição da empresa individual de responsabilidade limitada por pessoa natural, estabelecendo que qualquer pessoa pode constituir esse tipo societário, desde que atendidas as demais exigências legais. Esse entendimento reside no princípio da legalidade, consagrado no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Pelo princípio da legalidade, aplicado ao direito privado, os particulares podem fazer tudo aquilo o que a lei não proíbe, prevalecendo a autonomia de vontade. Em outras palavras, qualquer ação ou omissão só poderá ser exigida por lei.
Discordando desse entendimento, o Departamento Nacional de Registro do Comércio, excedendo na sua competência regulamentar, vedou a constituição de EIRELI por pessoa jurídica, através da Instrução Normativa nº 117/2011, que aprovou o Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. O item 1.2.11 da referida IN 117/2011 determina que “Não pode ser titular de EIRELI a pessoa jurídica, bem assim a pessoa natural impedida por norma constitucional ou por lei especial”.
Essa indevida regulamentação pelo DNRC cria para as pessoas jurídicas que desejem fazer uso da EIRELI um embaraço que somente poderá ser resolvido por via judicial. Nesse sentido, já há ações judiciais, buscando a autorização para a constituição de EIRELI por pessoas jurídicas.
Em razão do questionamento relativo à legitimidade da pessoa jurídica para constituir uma EIRELI, o Deputado Marcos Monte, autor da Lei n° 12.441/11, elaborou o Projeto de Lei 3.292/12, que altera o art. 980-A, que, se sancionado o referido PL, passaria a constar com a seguinte redação:

Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada-EIRELI será constituída por uma única pessoa, natural ou jurídica, titular da totalidade do capital social, que poderá ser nacional ou estrangeiro, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País.

Em sua justificativa para a proposição da alteração do art. 980-A, inserido no Código Civil por lei originada de um projeto de sua própria autoria, o Dep. Marcos Monte assim esclareceu:

Pois bem, como é natural no início de vigência de normas no País, antes mesmo de sua entrada em vigor, essa nova modalidade de empresa já vinha suscitando diversas dúvidas entre alguns órgãos governamentais, advogados e profissionais que atuam no segmento empresarial. Dentre elas, destacamos o questionamento sobre a possibilidade da “Eireli” ser constituída por pessoa jurídica, além de se indagar se tais empresas poderiam desempenhar atividades não empresariais, a exemplo de atividades intelectuais: de natureza científica, literária ou artística.
Entendemos que não deve haver qualquer óbice legal à possibilidade de uma pessoa jurídica, e não somente as pessoas naturais, poder figurar como titular de uma “Eireli”. Do mesmo modo, não pode haver obstáculos para que esta nova espécie empresarial possa ser constituída por uma pessoa jurídica de capital estrangeiro, uma vez que a própria Constituição Federal, em seu art. 172, admite os investimentos no País mediante o aporte de capital estrangeiro. Naturalmente, que aqui não se pretende estabelecer qualquer privilégio para o capital estrangeiro que eventualmente constituir uma “Eireli”, uma vez que o mesmo estará submetido igualmente aos ditames da Lei nº 4.131/62.

Diante da manifesta intenção do autor da lei que alterou o Código Civil, criando um novo tipo societário, de permitir não somente às pessoas naturais, mas também às pessoas jurídicas, de constituírem uma EIRELI e, mais ainda, especificar que o capital dessa empresa possa ser, inclusive, estrangeiro, poder-se-ia, aqui, aludir à hermenêutica jurídica, no que tange à vontade do legislador, mas esse é um tema polêmico, que tomaria muito mais espaço do que o que a autora dispõe para finalizar este artigo. Reduzir a uma ou duas páginas toda a celeuma em torno das contraposições entre a vontade do legislador (doutrina subjetivista) e a vontade da lei (doutrina objetivista) seria imprudente. Todavia, não se pode perder de vista que toda a discussão sobre o art. 980-A, tal como vige atualmente, fica enfraquecida diante do induvidoso e expresso esclarecimento do autor da Lei n° 12.441/2011 quanto à clara intenção de que, ao suprimir do texto original a condição de que o titular de uma EIRELI deveria ser uma pessoa natural, a finalidade desse novo tipo societário é, de fato, permitir que também a pessoa jurídica possa fazer uso dessa nova modalidade de sociedade (em que pese a palavra “sociedade” também não ser oportuna à EIRELI, visto que apenas uma pessoa é titular da integralidade de seu capital, e uma sociedade pressupõe a associação entre pessoas para a exploração de um negócio ou o atingimento de um fim comum).
Por fim, esgotando o tema neste trabalho, é de se aduzir que, além do PL 3.292/12 acima referido, outro projeto de lei está em andamento no Senado Federal, visando a alterar o mesmo art. 980-A do Código Civil. Trata-se do Projeto de Lei n° 96, de 12/04/2012, do Senador Paulo Bauer, que propõe aperfeiçoar a disciplina da empresa individual de responsabilidade limitada e para permitir a constituição de sociedade limitada unipessoal.
Segundo esclarece o Senador Paulo Bauer na justificação do Projeto de Lei n° 96/2012:
O caput do art. 980-A determina que a empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa, omitindo-se a palavra “natural”. Não foi esclarecido se a empresa pode ser constituída somente por uma pessoa natural ou se também pode ser constituída por uma pessoa jurídica.

A celeuma sobre a possibilidade de uma pessoa jurídica constituir uma EIRELI, como se percebe, ainda produzirá alguns capítulos adicionais, incluindo decisões judiciais, artigos de juristas, debates e os andamentos dos projetos de lei apresentados; enquanto isso, muitos empreendedores continuam no escuro, procurando uma luz (ou por um sócio para compor a tal pluralidade exigida por lei, para garantir-lhes o benefício da responsabilidade limitada ao capital da sociedade).

3.3 O capital mínimo

Outra questão controversa que a Lei n° 12.441/12 trouxe ao debate jurídico é a exigência de um capital mínimo para a constituição de uma EIRELI.
De acordo com o que determina o agora já famigerado art. 980-A, o capital de uma EIRELI não pode ser inferior a 100 vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Essa limitação tem gerado questionamentos de ordem jurídica e econômica.
Do ponto-de-vista jurídico, a discussão gira em torno de uma possível inconstitucionalidade dessa disposição legal, seja em razão de violação ao princípio da livre iniciativa, insculpido no art. 170 da Constituição Federal, seja por infringir o que dispõe o inciso IV do art. 7° dessa mesma Carta Política, que veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim. Nesse sentido, o PPS (Partido Popular Socialista) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4637) no Supremo Tribunal Federal, na qual requereu uma medida cautelar que impedisse a entrada em vigor da parte final do caput do art. 980-A da Lei n° 10.406/2002 (Código Civil), onde consta a exigência do capital mínimo, bem como a declaração definitiva da inconstitucionalidade dessa parte final, para fins de que o artigo retro mencionado tenha suprimido esse requisito obrigatório.
Do prisma econômico, de fato, a obrigatoriedade de capitalizar a EIRELI, de uma vez, no valor equivalente, nesta data, a quase R$ 70.000,00, exclui, sem dúvida alguma, os pequenos empreendedores da possibilidade de constituir uma EIRELI. Considerando que, segundo entendimento geral, essa nova forma foi editada com o propósito de permitir e facilitar o desenvolvimento econômico e social do país, acabando com as “sociedades fictícias”, essa restrição não parece ser sensata, nem tampouco estar alinhada com o propósito da criação da EIRELI. E mais: o fato de o capital inicial da EIRELI ser, obrigatoriamente, em patamar elevado, para, segundo os que defendem essa disposição, dar garantias aos credores, não acautela, na realidade, eventuais dívidas da empresa, já que, como se sabe, o capital declarado é tão somente nominal, restando congelado no tempo, diferentemente do patrimônio da empresa, que oscila para mais e para menos no curso da existência da empresa. Ou seja, conforme as palavras de Alfredo de Assis Gonçalves Neto:

A sociedade utiliza seu patrimônio para a realização de seus fins. Ao fazê-lo, esse patrimônio oscila de valor e se modifica a todo momento: cresce e definha de conformidade com as injunções do mercado ou com a expansão ou o encolhimento das atividades sociais. Contrastando com ele, o capital social é um valor permanente, uma cifra fixa que permanece como referencial do valor, não do patrimônio de cada dia, mas da massa patrimonial que os sócios reputaram ideal para a sociedade poder atuar. Assim, no momento da constituição da sociedade, capital e patrimônio têm o mesmo valor. Mas, iniciando-se a atividade social, o patrimônio oscila aumentando ou encolhendo, segundo as vicissitudes da atividade exercida, enquanto o capital mantém-se fixo, como um número, uma cifra constante e permanente.

Há os que defendam a exigência do capital mínimo, para evitar o uso da EIRELI como veículo para fraudar a legislação trabalhista, dentro da prática que se estabeleceu no país de empregadores exigirem de empregados que prestem serviços sob uma pessoa jurídica, para evitar os encargos trabalhistas e previdenciários decorrentes do vínculo empregatício. Essa vedação, no entanto, não socorrerá nem o empregado, nem a Previdência Social, já que a fraude, se intencionada, continuará a existir, travestida de sociedade limitada, com a figura do “sócio fictício”. Para que esse argumento fosse coerente, mister seria alterar as normas da constituição das demais sociedades, impondo, a todas, também, um capital mínimo (em que pese essa providência esbarraria no já mencionado art. 170 de nossa Carta Magna).
Tenha-se presente, dentro do debate acima referido, que o Deputado Marcos Monte, na justificativa para a apresentação do PL n° 4.605, de 2009, esclareceu que:

Pois bem, Senhores Parlamentares, valho-me das palavras finais do Prof. Guilherme Duque Estrada de Moraes para indagar por que esperamos tanto nesta Casa para disciplinar esse novo modelo de sociedade empresária em nosso País, que, por certo, trará grandes contribuições e incentivará a formalização de milhares de empreendedores que atuam em nossa economia de maneira desorganizada e sem contribuir devidamente para a arrecadação de impostos.
Diante desse disciplinamento legal, que ora propomos, acreditamos que o Estado terá grandes ganhos no aumento da arrecadação e a economia como um todo evoluirá com a formalização e melhor organização de um segmento importante dos negócios, que responde por mais de 80% da geração de empregos neste país, conforme dados do próprio SEBRAE.

Diante dessa manifestação de propósito, é, no mínimo, incoerente propor uma medida para beneficiar os “milhares de empreendedores que atuam em nossa economia de maneira desorganizada”, especialmente considerando que quem atua de “maneira desorganizada” não são os empreendedores com mais recursos financeiros, e sim, o oposto, se a medida já impõe, de saída, a obrigatoriedade de uma disponibilidade financeira da qual esses “milhares de empreendedores” não possuem.

Conclusão

Este artigo não tem a pretensão de esgotar o tema sobre as EIRELIs, mas trazer a debate as questões que limitam o uso desse novo tipo societário pelas pessoas a quem, teoricamente, se destina.
Necessário reconhecer a evolução da legislação pátria, que despertou para uma realidade paralela que, já de há décadas, vem prevalecendo em detrimento do desenvolvimento econômico. No entanto, é preciso ajustar os critérios que inspiraram a elaboração e a aprovação da Lei n° 12.441/2011 à sua aplicabilidade, entendendo, antes de tudo, os objetivos a serem alcançados com a criação da EIRELI. Do contrário, o espírito de fomentação do empreendedorismo que norteou essa iniciativa se perderá.

Referências Bibliográficas
Fontes

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Obras Consultadas

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Os Desafios dos Próximos 20 anos

Autor Rafaella Marcolini- Publicado na Edição Comemorativa 20 anos da Constituição Federal, Editora Escala, 2009

A idéia de um Judiciário ativista surgiu nos Estados Unidos aproximadamente no século XIX, mas veio a se consagrar somente no século seguinte, por volta de 1970. A Suprema Corte Americana revestiu-se do poder assegurado pela Constituição para pronunciar-se, ativamente, balizando os demais poderes federativos. O caso emblemático e mais citado ocorreu em 1803, em Marbury versus Madison, no qual nasceu a idéia, hoje disseminada em todos os Países democráticos, da supremacia da decisão judicial. Neste julgado abriu-se caminho para a “Judicial Review” que ancorou-se na possibilidade do Judiciário rever os atos do Congresso praticados em ofensa à Constituição.

Mais adiante, a persistência travada pela Suprema Corte a fim de implementar as ações afirmativas serviram, igualmente, para fortalecer a política de cotas. Ao longo das mudanças políticas sofridas nos Estados Unidos, desencadeadas, em sua maioria, pelo confronto entre os Poderes Judiciário e Executivo na década de 30, o Judiciário veio trilhando um caminho de efetivação de garantias e direitos estabelecidos em princípios e comandos constitucionais.

À exemplo dos norte-americanos, embora com um pouco de atraso, o Brasil passou a adotar, com as devidas adaptações, o caminho da “judicialização da política” inaugurado pelos Estados Unidos. Este termo vem sendo utilizado pela doutrina para definir o vínculo entre democracia e ativismo judicial. Em outras palavras, é o conceito que estabelece uma ampliação da atuação do Poder Judiciário, com farta ingerência na vida política e nas questões de forte destaque social.

Alguns fatores conjugados explicam esta nova perspectiva: o aumento da demanda por justiça, com a facilitação do seu acesso, o exercício mais pleno da cidadania, motivado pela mídia e pela conscientização popular, e a morosidade do Legislativo em agir, característica do sistema legislativo democrático, que exige um encadeamento de etapas para aprovação de uma nova lei.

A ampliação da ação judicial ocupando as lacunas deixadas pelo Legislativo, seja pela sua morosidade seja pela ausência de vontade política em regulamentar os dispositivos constitucionais de eficácia normativa limitada – que dependem de norma infraconstitucional para produzir efeito-, tem se tornado freqüente, gerando debates acalorados na doutrina acerca de sua adequação ao sistema de tripartição de poderes e ao princípio da neutralidade do Poder Judiciário.

Questionado sobre o tema, o jurista Dalmo Dallari, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, afirma que este fenômeno é conseqüência de “falhas graves” do Poder Legislativo. “O Legislativo é omisso, muitas das leis criadas são inconstitucionais, e decisões são tomadas por critérios políticos, em função de interesses imediatos“, avalia Dallari.

Há quem advogue que a prática de sucessivas decisões fora do âmbito do legislador negativo- função intrínseca ao julgador de uma Corte Constitucional- esbarraria no princípio da separação dos poderes, e que, ato contínuo, a perpetração da idéia de que o Supremo Tribunal Federal alargue suas funções a fim de criar deveres concretos para os cidadãos e para a Administração Pública sem a precedente discussão política no Congresso Nacional, ameaçaria os sustentáculos nos quais se firma o Estado Democrático de Direito.

Contudo, não há como negar que a expansão da ação judicial, invadindo esferas de outros Poderes é, pois, uma característica inerente as sociedades democráticas contemporâneas. A consagração de princípios constitucionais que elevam-se a condições de dogmas de um sistema normativo conduz à obrigatória “interpretação construtivista” termo cunhado pela professora Gisele Cittadino, na obra “Poder Judiciário: ativismo Judiciário e democracia”.

Este movimento é flagrante não apenas na mais alta Corte do País, mas, de forma menos constante embora não menos relevante, nos tribunais estaduais que cada vez mais têm proferido decisões firmadas em dispositivos constitucionais que asseguram, por exemplo, o direito a saúde, para determinarem que uma Secretaria Estadual forneça, regularmente, um determinado medicamento a paciente enfermo que não tenha condições de adquiri-lo.

A facilidade do acesso ao Poder Judiciário contribui, consideravelmente, para o aumento do número de ações desta natureza.Ainda citando a professora Cittadino, “os tribunais estão mais abertos ao cidadão que as demais instituições políticas e não podem deixar de dar alguma resposta às demandas que lhe são apresentadas”.

Não se arriscam a afirmar, todavia, os juristas que já debruçaram-se sobre a matéria, que a partir de agora inaugurar-se-á uma nova entidade pública, que assumirá funções não definidas constitucionalmente, numa espécie de amálgama da junção de dois poderes distintos. Atestam, por outro lado, que o clamor público pela efetividade de direitos positivados na Constituição conduziu a criação de um tipo inédito de atuação do Poder Judiciário, resultado do surgimento de um “sentimento constitucional”, na apropriada definição do professor Luis Roberto Barroso.

Muito embora ecoam vozes pela doutrina a criticar esta posição assumida especialmente pelo STF, não se pode negar que a esta Corte atribui-se a responsabilidade por corrigir eventuais equívocos que possam colocar em risco o Estado de Direito, a fim de manter a salvos o espírito da República e a democracia.

A fim de alcançar tal objetivo é preciso não desviar dos meios colocados a disposição do Judiciário pela própria Constituição, evitando abusos de procedimento. É possível e recomendável que se utilize os mecanismos processuais que a própria Constituição de 1988 instituiu e que permitem que se garanta eficácia aos seus princípios. Sem dúvida que este exercício demandará uma atuação do Poder Judiciário, mas dentro do balizamento constitucional e conjugado com os demais Poderes.

O ativismo do Judiciário é produto de uma sociedade participativa e consciente de seus direitos, reflexo do amadurecimento da democracia e de suas instituições. O exercício pleno desta cidadania, deve, pois, assumir não só os contornos relativos às pressões que tem sofrido os Tribunais, mas, sobretudo em invocar respeito e estrita obediência aos ditames constitucionais bem como em exigir uma atuação diligente e equilibrada de todos os Poderes, conforme a lição de Montesquieu.